“Snatch: Porcos e Diamantes” é um organismo barulhento e elétrico, uma engrenagem mal lubrificada onde tudo range, treme, gira. As histórias se atropelam como velhos conhecidos que fingem surpresa no reencontro. Um diamante, claro, serve de ignição. Mas é o menor dos problemas. O filme está menos interessado na pedra do que nas mãos que tentam agarrá-la. E essas mãos tremem, suam, sangram, estão sujas de terra e de intenção.
Aos olhos cínicos, poderia parecer um desfile de caricaturas. Tony Dente de Bala. Franky Quatro-Dedos. Boris, o Punhal. Mas Ritchie não escorrega no grotesco por falta de elegância; ele mergulha de propósito. Esculpe seus personagens como quem está entediado da realidade. O resultado é um zoológico humano onde cada animal fala demais e escuta de menos. O mundo que surge é um gueto colorido por palavrões, sotaques distorcidos e armas que mudam de mão mais rápido que moeda em mesa de apostas.
Brad Pitt é Mickey O’Neil, cigano pugilista com vocabulário criptografado e físico trincado. Ele não interpreta: ele ocupa. Cada cena em que aparece, o ar rarefaz. Fala sem ser entendido, mas o corpo grita. Há em Mickey um caos sereno, como se o universo pudesse explodir ao redor e ele continuasse a dançar naquele inglês atravessado. Algo de Tyler Durden, sim, mas com a graxa do submundo colada à pele. Não quer mudar nada, não quer salvar ninguém. Quer apenas que não lhe digam onde colocar sua caravana.
Jason Statham surge em forma embrionária do astro que viria a ser. Aqui, é Turco, o narrador e vítima. Um homem que acredita estar no controle, apenas para descobrir que a mesa do jogo foi serrada antes do início da partida. Não há heroísmo, mas uma tentativa desesperada de não ser o mais estúpido entre os canalhas.
Guy Ritchie não dirige cenas, dirige colapsos. É um coreógrafo da ruína. E em “Snatch: Porcos e Diamantes” está no auge dessa habilidade. Ele faz do tempo algo elástico. Avança, volta, congela, acelera. Como se dissesse: não confie nem no relógio. A montagem não quer ordenar, quer confundir com estilo. Um cinema que aposta no excesso, mas sabe dosar a anestesia. A violência vira cartoon, e por isso mesmo assusta: porque ri com a boca cheia de dentes quebrados.
Há quem diga que são muitos personagens. Talvez sejam mesmo. Mas o excesso aqui é estética, não descuido. É como uma orquestra onde todos os instrumentos estão ligeiramente desafinados, mas tocando a mesma música com a convicção de um hino. Se não se entende tudo, paciência. A compreensão não é exigência, é efeito colateral.
E tem Londres, claro. Mas não a Londres das cabines telefônicas e dos guardas com chapéus engraçados. É a Londres subterrânea, malcheirosa, que vende peixe, soca sem luvas, e negocia com a mão esquerda enquanto a direita aponta uma arma. Ritchie filma essa cidade como quem conhece seus becos pelo nome e seus ratos pela família.
“Snatch: Porcos e Diamantes” talvez seja confundido com ruído, e é justamente aí que revela sua astúcia: seu caos é ritmo, sua sujeira é código, sua comicidade é nervo exposto. O filme não quer ser decifrado. Ele desafia o espectador a acompanhá-lo com os olhos abertos e os dentes semicerrados. E quem aceita o convite percebe, cedo ou tarde, que Ritchie não constrói histórias: ele dispara armadilhas narrativas e observa quem escapa. Ou quem tropeça com estilo.
Não há catarse, não há redenção, não há tese escondida em monólogo final. Há movimento. E há uma inteligência violenta nisso: fazer o cinema parecer algo que aconteceu por acaso, mas cuja precisão de pulso nunca se desfaz.
Quem procura coerência encontrará ruído. Quem procura fórmula, se perde. Mas quem tiver apetite por linguagem como faca cega, encontrará aqui um banquete.
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