Raphael Montes: o autor como produtor na era digital Thais Alvarenga / Site Oficial

Raphael Montes: o autor como produtor na era digital

O escritor Raphael Montes incomoda muita gente. Pode ser comparado à imagem do bode no meio da sala. O desconforto está presente em circuitos literários e intelectuais, onde se defende a existência de guardiões da linguagem, distantes do ruído dos algoritmos e das hashtags. Montes rompe com essa imagem, usando método, lucidez e certo deleite. Com apenas 34 anos, oito romances e mais de 1 milhão de exemplares vendidos, ele é um best-seller e um sintoma do estado de coisas.

É ocioso de perguntar se ele faz “alta literatura” ou “literatura de entretenimento”. Esse tipo de divisão, que por décadas serviu aos jurados e júris, ficou obsoleto diante da força das plataformas digitais, dos fluxos e da cultura do engajamento. Montes pertence a esse outro mundo novo.

A longa entrevista que concedeu ao programa “Roda Viva”, da TV Cultura, oferece uma série de chaves para entender o lugar que ele ocupa. Não é mais o lugar do autor isolado, moldado à imagem do século 19 e que escreve para um leitor ideal e solitário. Trata-se de um produtor de escrita que opera uma pequena central de escuta, produção e distribuição de conteúdo ancorado no formato da ficção literária. E a lógica que o orienta é 100% dos mercados digitais e dinâmicos da atualidade.

Nesse modelo transacional, o primeiro ponto a se destacar é o imperativo da conversa. O mundo se estrutura hoje em conexões, interações e conversações.  A literatura de Montes nasce do ruído ou rumor coletivo que circula nas redes sociais. Assim ele é menos um autor no sentido tradicional e mais um roteirista de experiências digitais, um engenheiro criador de narrativas conectadas.

No “Roda Viva”, ele contou que lê resenhas no Skoob, mergulha nos comentários dos leitores e vasculha fóruns e plataformas. A investigação é para entender o que o público quer, teme e sobretudo deseja. Estamos falando de um autor que fala para os outros e se distancia do mito de quem escreve apenas para si mesmo.

O segundo traço de Montes é ser um autor multiplataforma. A obra jamais termina no papel. Desde o início, cada enredo ou cada personagem são pensados para canais múltiplos. Série, minissérie, filme telenovela, tudo pode nascer de um texto. Um exemplo recente é “Beleza Fatal”, telenovela criada por ele para o canal de streaming HBO Max, que combina o melodrama brasileiro clássico de TV com sua assinatura.

Autor em rede

Montes escreve para ser lido, visto, comentado e compartilhado. Para ele, segundo disse no “Roda Viva”, o critério ou objetivo a ser alcançado é gerar conversas. A crítica especializada é bem-vinda, mas o verdadeiro crivo é a reverberação social por meio de posts e comentários que sua obra é capaz de suscitar. Um escritor, nessa visão, é alguém que participa dos fluxos contemporâneos e joga com os afetos, os sentimentos e as reações do público em tempo real.

O gênero de ficção que melhor traduz esse novo modo de operar é o thriller. Esse é o terceiro aspecto central no projeto de Montes. A narrativa policial, com suas promessas de suspense, revelação e virada da trama, tornou-se o gênero por excelência das plataformas digitais. Netflix, Prime Video e Globoplay, por exemplo, apostam na velha estrutura de crime e investigação. Montes compreendeu bem essa demanda e fez isso de maneira ambiciosa e profissional.

Diferente da linhagem breve do romance policial brasileiro — Rubem Fonseca, Patrícia Melo, Marçal Aquino —, a obra de Raphael Montes assume de frente o detetivesco, o enigma, a lógica dos crimes e suas reencenações. Ele já chegou ao estágio da linguagem do “true crime” globalizado para criar produtos narrativos de alta rotatividade nos streamings. Escreveu uma série sobre Suzane von Richthofen e trabalha agora na história de Elize Matsunaga, duas assassinas brutais.

Há ainda um quarto eixo, fundamental para compreender sua posição. Raphael Montes insere na engrenagem do thriller as grandes pautas do presente. Violência doméstica, maternidade, identidades diversas. Esses temas atravessam sua obra, não como panfletos ou slogans, mas como tensões narrativas. Ele usa a diversidade para organizar os conflitos, as ambiguidades e os desfechos. Isso o aproxima ainda mais de um público que consome histórias contemporâneas e se vê dentro delas.

Literatura da distração

Pelo que disse no “Roda Viva”, o que bem sintetiza a operação narrativa de Montes é a lógica da economia da atenção. Ele tem plena consciência de que escreve e disputa espaço num mundo de distrações infinitas. Sua obra é construída para capturar a atenção de públicos cada vez mais dispersos, que consomem narrativas entre um vídeo curto e outro, entre uma notificação e outra nas redes sociais. Porém, faz isso curiosamente produzindo mais distração e mais entretenimento.

Há uma espécie de torção aí, que lembra a crítica feita por Saul Bellow, num ensaio célebre, sobre como a cultura contemporânea parece promover sistematicamente a dispersão e a dissolução da concentração. Montes jamais combate essa lógica. O objetivo claro é dominá-la, aprendendo com ela. O resultado é a produção de um artefato narrativo e compartilhável para as mais diversas plataformas digitais.

No final da entrevista, ao ser questionado sobre inteligência artificial, Montes oferece uma resposta simples, quase singela. Segundo ele, a IA jamais superará o autor humano, porque o ser humano faz a diferença. A resposta causa um certo desconcerto. Ele, que é um autor tipicamente digital, multiplataforma, nascido na lógica dos algoritmos, parece por um momento esquecer que sua própria prática já antecipa a era da inteligência artificial. Talvez venha a fazer uma colaboração inevitável com ela.

Raphael Montes entendeu, como poucos no Brasil, que o importante na atualidade não é quem escreve, mas quem interage, comenta e se envolve com os públicos ou comunidades digitais. A obra dele é o presente da literatura, em forma acelerada. Um presente onde o autor é um produtor permanente de conteúdo. E a leitura é um ponto de partida para a geração de imagens, a discussão e o compartilhamento.