A escritora que escreveu e publicou sem o marido saber — e deu origem ao Dia das Mães como ato político

A escritora que escreveu e publicou sem o marido saber — e deu origem ao Dia das Mães como ato político

Em 1853 uma coletânea de poemas intitulada “Passion-Flowers”, título que pode ser traduzido como “Flores da Paixão”, sem edição conhecida em português, chegou à tipografia em Boston sem nome na capa, sem declaração de autoria e sem mediação pública. Publicado anonimamente pela editora Ticknor, Reed & Fields, o volume reunia versos de ritmo grave e ironia contida, revelando uma voz feminina com domínio técnico e afeto comedido, mas nada submisso. A família de Julia Ward Howe leu, a crítica leu, o marido leu. E ninguém, ao menos oficialmente, sabia que era dela. Ou talvez fingissem não saber. Publicar às escondidas não era apenas uma precaução moral. Era, naquele cenário doméstico e político, uma forma de sobrevivência simbólica. Samuel Gridley Howe, marido de Julia, era figura pública respeitada, reformador, herói abolicionista e homem de imprensa. Segundo biógrafos e cartas pessoais, era também um cético firme quanto à inteligência da esposa. Não a proibia de escrever, mas não esperava que ela publicasse. Não precisava proibir. A desaprovação tácita bastava. O poder do não dito, nesse contexto, era mais durável e mais eficaz que qualquer veto explícito.

Julia Ward Howe
Julia Ward Howe, em 1906. Aos olhos do tempo, uma esposa e mãe. Na escrita, uma autora que desobedeceu devagar — e fundou um gesto irreversível

Julia escrevia entre os filhos e a etiqueta, dobrando sua vontade de existir ao meio e encaixando-a com cuidado entre tarefas sociais, leitura de jornais e a espera. “Passion-Flowers” foi lido como livro anônimo feminino, e muitos textos da época atribuíram sua autoria a uma jovem viúva sensível. A ironia disso não passou despercebida a ela. Em cartas a amigas, décadas depois, Julia falava da publicação como quem conta um crime íntimo, com certo orgulho, mas também com um cansaço que não se pode traduzir.

Não é que Julia não fosse respeitada. Era culta, falava várias línguas, lia filosofia alemã antes de ser moda. Mas isso a colocava fora de lugar. Em salões sociais, era a esposa que falava demais. Em casa, a mãe que pensava demais. O tipo de mulher que, segundo Samuel, devia usar seus talentos para embelezar o lar e sustentar moralmente o marido. Escrever, sim. Desde que fosse em diário. Desde que não vazasse.

Em 1857 veio um novo livro, igualmente anônimo, mas com diferença sensível. “Words for the Hour”, cujo título pode ser lido como “Palavras da Hora” e que, como o anterior, segue sem tradução em português, reunia poemas mais nítidos na forma e mais densos na intenção. A escrita deixava de sugerir e começava a afirmar. A voz que antes contornava o conflito agora o encarava diretamente. Identidade, desejo, finitude, fé: os temas estavam lá, mas com outra temperatura. Não se tratava mais de escapar em silêncio, e sim de insistir com clareza. A crítica oscilava entre desconcerto e admiração, e embora o nome da autora ainda não estivesse visível, o impulso de autoria já não podia ser contido nem disfarçado. A letra permanecia sem rosto, mas o gesto já era inconfundível.

Décadas depois, já viúva, Julia escreveu a letra de “Battle Hymn of the Republic” (“O Hino de Batalha da República”), uma espécie de hino nacional alternativo que a consagrou publicamente. Foi aplaudida, lida, reverenciada. E, ainda assim, não é nesse feito que sua revolução começa. Começa ali, no silêncio escolhido, no anonimato deliberado, na coragem de publicar sem o aval do marido. O mesmo que lutava, em público, pela libertação de outros homens.

Passion-Flowers: poemas que falavam de amor, perda e confinamento doméstico — tudo escondido sob a aparência de delicadeza

É um paradoxo histórico incômodo. Homens que libertavam escravos e negavam a liberdade de pensamento às esposas. Que defendiam o sufrágio masculino e questionavam a ambição feminina. Que elogiavam a força moral das mulheres enquanto subestimavam a força intelectual delas. Julia conhecia esse paradoxo de dentro. Viveu, durante décadas, dentro da contradição entre admiração pública e contenção privada. Escrever era a forma de não enlouquecer dentro dela.

O gesto de Julia Ward Howe não foi único. Frances Burney, antes dela, já publicava sem contar ao pai. Jane Austen também. Mesmo Virginia Woolf, anos depois, escreveria sobre a necessidade de um espaço próprio. Mas Julia viveu isso com o agravante de ter se casado com alguém que partilhava os ideais de justiça social, desde que ela não os aplicasse à própria condição. Talvez por isso sua escrita tenha assumido, tão cedo, o tom de um documento encoberto. Não queria provocar, mas precisava registrar. E isso, mais do que a beleza da forma ou o refinamento do verso, é o que permanece.

Hoje, poucos leitores lembram os versos de “Passion-Flowers”. Mas lembrar ou não é secundário. O que importa é o gesto inaugural: uma mulher publicou sem permissão. No século 19. Contra o costume. Contra o marido. Contra a lógica doméstica que ditava que esposas não tinham leitores. Julia teve. Sem nome, sem rosto, mas com palavras.

Isso transformou não apenas sua biografia. Transformou a literatura ao reafirmar que ela também é feita no subterrâneo da permissão.

Mas talvez o gesto mais político de Julia Ward Howe não tenha vindo em verso, e sim em forma de chamado público. Um texto que não foi poema nem carta pessoal, mas proclamação. Em 1870, cinco anos após o fim da Guerra Civil Americana, Julia redigiu o documento que ficou conhecido como “Mother’s Day Proclamation”. Um apelo à paz. Um manifesto assinado por uma mulher que já havia aprendido, no corpo e na casa, o preço do silêncio. Ali, Julia escrevia não como mãe doméstica, mas como pensadora pública. E não escrevia sobre flores ou almoços de domingo. Escrevia sobre luto, responsabilidade e poder.

Words for the Hour: Julia Ward Howe escreveu com mais clareza e mais risco. Ainda sem assinar. Ainda em silêncio

“Arise, then, women of this day! Arise, all women who have hearts, whether our baptism be that of water or of tears.”

“Levantai-vos, pois, mulheres deste dia. Levantai-vos, todas as mulheres que têm coração, quer nosso batismo seja o da água ou das lágrimas.”

O texto conclamava mulheres do mundo inteiro a se unirem contra a guerra. Que deixassem de aceitar, em silêncio, que os homens decidissem sozinhos sobre a morte de seus filhos. Que a maternidade, enfim, se tornasse força cívica, e não apenas condição biológica ou afeto disciplinado. Julia falava com solenidade, mas sem abstração. Suas palavras nomeavam o que até então se calava: a exclusão moral das mulheres da esfera política, mesmo quando era o corpo delas que perdia. A convocação não era simbólica. Era um chamado real à ação.

Ela foi clara. Mães não deveriam apenas chorar os filhos perdidos, mas agir para que eles não fossem mais perdidos. A maternidade que ela invocava era incompatível com a omissão. Era, em si, um campo de enfrentamento. Um lugar de autoridade moral com implicações públicas. É por isso que o “Mother’s Day Proclamation” não pode ser lido como curiosidade histórica, mas como antecedente intelectual do feminismo pacifista. E como um ato de ruptura com o ideal doméstico do século 19.

Essa proclamação é, na origem, o verdadeiro embrião do que hoje se conhece como “Dia das Mães”. Não o feriado reduzido a presentes e flores, mas a ideia original: a de que as mulheres, reunidas, poderiam erguer uma linguagem comum contra a violência organizada. Décadas depois, Anna Jarvis tornaria oficial a data em memória da própria mãe. Mas o que Julia havia feito já estava plantado, e é ela quem aparece como autora da primeira proposta documentada de um “dia das mães” com conteúdo político.

Curiosamente, a história oficial apagou essa origem. E em muitos sentidos, isso também faz sentido. Julia não era a mãe doce e resignada do imaginário vitoriano. Era uma intelectual. Uma mulher pública. Uma escritora que, para poder escrever, teve que esconder a escrita. Que foi reconhecida, mas só até certo ponto. Que teve sua voz publicada, mas com atraso. E que foi ouvida, sobretudo, quando falou como mulher genérica, e não como indivíduo específico. A proclamação, afinal, é escrita na segunda pessoa do plural. Um truque retórico, talvez. Mas também uma escolha tática: ao se dissolver na coletividade, Julia podia ser mais livre.

A autoridade de Julia Ward Howe, portanto, não está apenas em sua biografia. Está no que ela construiu como pensamento. Uma noção expandida de maternidade. Uma crítica da obediência. Uma escrita em camadas. Ela pensava com o corpo, com a língua, com a família inteira em volta. E talvez por isso tenha resistido tanto. Porque não escrevia só por si. Escrevia para formar o que ainda não existia: um público feminino ativo, com voz, com papel político.

Julia Ward Howe, autora que escreveu sem permissão e publicou sem nome — mas não sem voz

Voltar a ela, hoje, é reconhecer uma autora que nunca deixou de estar à altura do próprio tempo, mas que o tempo, por conveniência, preferiu colocar à margem. É lembrar que a autoria feminina, em certas épocas, teve de vir pela porta lateral. Pela dobra do papel escondido no bolso. Pela ausência do nome na capa. Pelo silêncio no jantar, enquanto o marido falava de política e ela já a escrevia, no seu modo. Porque no fundo é isso. Julia não esperou ser autorizada a existir como autora. E esse gesto, mesmo que ofuscado pela versão folclórica da história, permanece. Nítido. Incômodo. Irreversível. Ela morreu em 17 de outubro de 1910, aos 91 anos — e continuava sendo lida.

Revista Bula

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