Nietzsche matou Deus. Será mesmo? Com seu “Deus está morto”, frase de herética provocação, eternizada em “A Gaia Ciência” (1882), o filósofo da suspeita documentou o colapso das bases metafísicas que sustentavam a moral, mas alguém sempre chega primeiro. Muito antes que ecoasse o brado niilista nietzschiano, um pensador holandês do século 17 já havia dado um golpe silencioso, mas certeiro, na concepção clássica do divino. Ao redefinir a ideia de um ser transcendental e tudo o que há por trás disso, Baruch Spinoza (1632-1677) não apenas dissolveu a imagem tradicional de um Deus metafísico, antropomórfico e inalcançável, como inaugurou uma revolução filosófica que só mais tarde seria percebida em sua toda a sua complexidade. Nesse sentido, e possível afirmar que Spinoza havia matado Deus duzentos anos à frente de Nietzsche, e poucos se deram conta.
Em “Ética Demonstrada à Maneira dos Geômetras” (1677), sua obra máxima, Spinoza substitui a noção de um Deus criador, externo e voluntarioso, pela ideia de Deus como substância imanente, única e infinita, que identifica com a própria Natureza (“Deus sive Natura”, ou “Deus, isto é, Natureza”). Essa equação, que à primeira vista parece apaziguadora, é, por outro lado, iconoclástica: ao afirmar que Deus é a Natureza, Spinoza destrói o fundamento do teísmo judaico-cristão. Se Deus não é uma entidade separada do mundo, mas o próprio tecido da vida, então desaparecem junto com Ele atributos essenciais da fé como a conhecemos: a Providência, o prodígio dos milagres, o juízo final, a hegemonia do bem sobre o mal baseada na autoridade do Legislador que Não Dorme. Segundo Spinoza, Deus não ama, não castiga, não escolhe ninguém, não ouve preces. Em vez de um Pai, o filósofo refere-se a Deus como uma estrutura cósmica sem rosto, impessoal, funcionando de acordo com leis imutáveis e draconianas. Seu pensamento de contestadora ousadia era encarado como mais perigoso que o ateísmo confesso, uma vez que enquanto o descrente nega a figura clássica de Deus, Spinoza o transforma numa substância palpável, indistinta da matéria. A própria matéria, enfim.
Nietzsche encena um drama existencial, mas Spinoza constrói uma dedução geométrica. A sentença de morte do holandês ao Todo-Poderoso não veio em forma de profecia, mas de teorema. É bem verdade que Nietzsche conhecia Spinoza e chegou a admiti-lo como uma de suas influências. Ambos negam o livre-arbítrio, além de rejeitarem o dualismo corpo-alma, desmontando o moralismo ancorado em doutrinas religiosas. O parentesco filosófico entre os dois para por aí, contudo. Onde Nietzsche vê caos e vontade de potência, Spinoza vê ordem e razão; Nietzsche aponta para o trágico e o dionisíaco, ao passo que Spinoza crê no conhecimento como a origem da beatitude. Se Nietzsche é o filósofo do abismo, Spinoza é o da serenidade. Ao matar o Deus punitivo, Spinoza pretende libertar a humanidade e antecipa ideias revolucionárias, feito a da separação entre Estado e religião, Deus e o poder, que só séculos depois tornar-se-iam o eixo das democracias modernas.
O motivo pelo qual poucos notaram a morte de Deus em Spinoza talvez deva-se a seu estilo comedido, a seu rigor matemático disfarçado de racionalismo. A morte de Deus spinozana não leva ao desespero, mas a um novo entendimento de liberdade: a liberdade como ajuste do desejo à razão, como a ordem necessária e central de tudo. Se Nietzsche nos mostrou o vazio deixado pela morte de Deus, Spinoza encoraja-nos a habitá-lo com lucidez. Se o primeiro pregou no deserto, este pensou em silêncio. Ambos, porém, cada um a seu modo, sepultaram um Deus arcaico e ergueram um altar para novos deuses, Spinoza com a pena e Nietzsche usando um martelo ainda capaz de bater forte e fazer-se ouvir a distância. Spinoza espera ser procurado — e descoberto.