Este suspense na Netflix é um espetáculo para os olhos e para a mente — e quase ninguém viu Divulgação / Twentieth Century Fox

Este suspense na Netflix é um espetáculo para os olhos e para a mente — e quase ninguém viu

“A Cura” é uma experiência sensorial construída com a paciência de um pesadelo antigo. Gore Verbinski, mais conhecido pelas franquias que o consagraram junto ao grande público, mergulha aqui em um projeto singularmente autoral, descolado das exigências de ritmo e estrutura do cinema de mercado. A comparação mais imediata é visual: há algo de David Fincher nos enquadramentos obsessivos, algo de David Lynch na inquietação do subtexto. Mas essas referências, embora válidas, talvez obscureçam a verdade mais incômoda: “A Cura” é mais próximo de um cinema de fascínio do que de perturbação. Ou melhor: fascina justamente por perturbar de maneira sutil, quase narcótica.

A fotografia de Bojan Bazelli atua como um personagem. Os verdes doentios, os azuis aquosos, os cinzas translúcidos,  todos conspiram para produzir um efeito de suspensão. Não é só bonito. É belo em excesso, como um jardim que apodrece de tanto florescer. Verbinski faz disso um ponto de tensão. A beleza, em seu filme, é traiçoeira. E intencionalmente assim. Não se trata de embelezar o horror, mas de sugerir que o horror é precisamente o que se esconde por trás da obsessão pelo controle estético.

O protagonista, Lockhart, interpretado por Dane DeHaan com uma fisicalidade que mescla cansaço e arrogância, é o tipo de personagem que não se adapta à lógica de redenção tradicional. Ele não amadurece, não se humaniza, não se ilumina. Ele é apenas arrastado, por força de circunstâncias, por um desejo que não compreende, para dentro de um mundo que o transforma em algo entre paciente e cúmplice. A atuação de DeHaan é inteligente em sua contenção: sua expressão oscilante entre o tédio e o pânico cria um sujeito que não tem centro. E é justamente essa falta de eixo que o torna vulnerável ao ambiente que o engole.

A clínica na Suíça onde se passa a maior parte do filme não esconde seu parentesco com os castelos góticos da literatura do século 19. A influência de Poe é clara, não apenas em elementos como os subterrâneos, as fontes obscuras, os segredos familiares, mas sobretudo na atmosfera de delírio que nunca se desfaz por completo. Há algo também de Thomas Mann, se o autor de “A Montanha Mágica” tivesse escrito sob efeito de anestesia. A lentidão, os rituais repetidos, os médicos sorridentes demais: tudo isso compõe um cenário que não precisa explicar sua lógica porque opera segundo uma coerência própria, quase litúrgica.

É notável como o filme se recusa à pressa. Suas quase duas horas e meia parecem esticar a percepção do tempo. Muitos críticos apressados leram isso como falha de ritmo. Mas talvez seja o caso de reconhecer: “A Cura” é um filme que deseja operar fora da cronologia narrativa convencional. Ele não quer que você acompanhe a história. Quer que você se afunde nela. E, como num banho morno que gradualmente se torna sufocante, esse afundamento se dá sem estardalhaço, mas com peso.

Jenny Beavan, responsável pelo figurino, compõe os personagens como se todos tivessem saído de um retrato ou de um delírio historicista. Há ecos renascentistas, traços medievais, gestos de uma nostalgia que não pertence a ninguém em particular. O tempo da clínica não é o da Europa moderna. É um tempo lateral, onírico, onde até o padrão ético parece suspenso. Isso torna as ações dos personagens ainda mais difíceis de julgar: todos parecem operar de acordo com regras que o espectador não conhece, nem pode contestar.

Jason Isaacs, no papel do diretor da clínica, Heinrich Volmer, constrói seu personagem com a elegância de um vilão que não precisa se mostrar maligno. Seu domínio é atmosférico, não verbal. Ele convence por presença, não por retórica. E é justamente essa economia de explicação que torna sua figura tão inquietante. Ele sabe o que está fazendo, e parece saber também que o espectador, no fundo, quer saber menos do que pensa. Há um pacto silencioso entre o mal e a estética nesse filme, e Isaacs encarna isso com precisão.

Mia Goth, como Hannah, é a contrapartida da hesitação masculina de Lockhart. Sua personagem oscila entre a ausência e o pressentimento, como se habitasse uma realidade levemente deslocada da dos outros. Ela não interpreta, exatamente. Ela habita. Sua presença é como uma nota musical fora da escala: incômoda, mas necessária. As cenas entre ela e DeHaan têm uma tensão quase erótica, mas deslocada, como se o desejo ali fosse anterior ao corpo ou alheio a ele.

O roteiro, assinado por Verbinski e Justin Haythe, não busca coerência de manual. Ele se permite espaços vazios, símbolos soltos, alusões que não se fecham. Isso pode frustrar quem espera um thriller com respostas. Mas “A Cura” não é um thriller. É um delírio. E, como todo delírio bem construído, sua força está no que deixa escapar. As águas termais, os frascos, os sorrisos limpos — tudo isso funciona como alegoria do próprio gesto civilizatório de controlar o corpo e a mente, de manter a doença sob vigilância. Mas o que o filme parece perguntar, no fundo, é: e se aquilo que chamamos de bem-estar for apenas uma forma mais refinada de adoecimento?

O final, que não será aqui descrito, não é um ponto de chegada. É um eco. Lockhart não vence. Tampouco fracassa. Ele sobrevive, o que, nesse universo, talvez já seja um milagre. Ou uma ilusão. E é nesse ponto que Verbinski se diferencia da maioria de seus pares: ele não fecha. Ele deixa o filme escapar pelas bordas. E é ali, no que vaza, que sua obra se faz inesquecível.

Filme: A Cura
Diretor: Gore Verbinski
Ano: 2016
Gênero: Drama/Fantasia/Suspense
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★