Em 2025, um cidadão pode acordar e descobrir que está sendo vigiado. Isso não chega por carta. Não há batida na porta. É uma notificação opaca no celular, uma mudança súbita no algoritmo de crédito, um pedido de esclarecimento com termos vagos. Talvez uma convocação. Talvez só um silêncio administrativo que, de tão presente, se torna prova. A burocracia não é mais um prédio com salas escuras, mas um sistema onde as portas são links e os corredores, redes de permissão. E o mais kafkiano, se é que a palavra ainda serve para alguma coisa, é que o próprio Kafka já havia previsto isso. Sem internet. Sem protocolo. Sem senha de acesso.
Kafka escreveu “O Processo” como quem já tivesse vivido 2025, mas com a desvantagem de ainda estar em 1915. Ele viu o colapso da linguagem jurídica antes da informatização do Direito, viu o esvaziamento do sujeito antes dos avatares, sentiu o fracasso da apelação antes mesmo que o recurso fosse inventado. Josef K. acorda e é acusado, sem saber por quem, nem por quê. Essa ausência de causa não é apenas o enredo, é o ponto.
Agora, em 2025, chamamos isso de transparência reversa. O Estado exige tudo, vê tudo, cruza dados, mas não se mostra. E quando se mostra, é por espasmo. Kafka escreveu esse espasmo.
Há quem diga que ele inventou o absurdo. Isso está errado. O absurdo sempre existiu. Kafka só o escreveu com a frieza dos que não esperam revolução. Não há denúncia em “O Processo”. Há constatação. Uma espécie de frio mental que vem depois de muito esbravejar. Josef K. não grita. Nem se defende. Ele tenta entender, e isso já é demais. Em 2025, o que se espera de um cidadão também é isso, que ele não grite. Que ele aceite os termos de uso. Que ele consinta, sem saber para quê. Que ele exista, mas apenas nas margens do sistema, onde os erros se tornam normais e as correções, excepcionais.
Kafka teria entendido perfeitamente os termos e condições. Teria lido cada linha e dito que sim, é isso mesmo. Uma condenação não precisa de crime. Basta o contexto. Basta a máquina funcionando bem o suficiente para dispensar o motivo.
A ironia é que Kafka nunca terminou “O Processo”. O livro foi publicado depois da morte dele, por insistência de um amigo. Talvez isso diga mais sobre o conteúdo do que qualquer resenha, é um livro que só pode existir quando seu autor já não pode mais alterá-lo. Quando não há mais defesa possível.
Josef K., no fim, é apunhalado por dois homens que não explicam nada. Eles o matam como se limpassem uma sala. Discretamente. Com certa vergonha. Kafka chama de vergonha a última palavra do livro. Não é exagero. Em 2025, a vergonha é uma sensação coletiva, mas silenciosa. Cada um acha que está devendo alguma coisa. Que esqueceu de declarar um formulário. Que clicou no botão errado. Que sua versão digital cometeu um crime do qual sua versão analógica não tem lembrança. A vergonha, como em Kafka, é o que resta quando o absurdo se torna norma.
Não se trata, portanto, de alegoria. Kafka não descreveu uma distopia. Ele não previu um regime totalitário. Ele registrou, com antecedência, a maneira como a modernidade se tornaria ilegível. Como as estruturas sociais, legais e administrativas passariam a funcionar não com base em leis, mas em protocolos. A diferença é crucial. Uma lei pode ser questionada. Um protocolo apenas responde, “Erro 403”.
O escritor que morreu antes da guerra que matou os papéis escreveu o livro definitivo sobre a era dos termos sem papel. “O Processo” é sobre 2025 porque não depende do contexto histórico para funcionar. É uma engrenagem moral que opera em qualquer ano em que o indivíduo perca a capacidade de nomear sua culpa.
É difícil não pensar em Kafka quando se lê sobre sistemas automatizados de justiça, como os que já operam nos Estados Unidos, na China e em algumas cidades do Brasil. É difícil não vê-lo nas mensagens automáticas, nas recusas impessoais, nos portais que pedem o mesmo dado quatro vezes e, ao fim, informam que houve um erro desconhecido. Mas a presença mais cruel de Kafka talvez esteja em outra parte, na tentativa das pessoas de parecerem corretas, compreensíveis, organizadas, como se isso bastasse para impedir o colapso.
Josef K. achava que se explicasse tudo, seria absolvido. Nunca foi. Em 2025, também não seremos.
E talvez o mais kafkiano disso tudo não seja a burocracia, nem o poder opaco, nem o excesso de protocolos. Talvez o mais kafkiano seja termos nos acostumados com isso. O silêncio depois do erro. O botão que não funciona. O recurso que nunca é analisado. O número de protocolo que ninguém pode localizar.
Kafka não escreveu para o futuro. Mas escreveu do futuro. Como se por um breve instante tivesse acessado o que estava por vir. Não porque fosse um profeta, mas porque já estava cansado demais para esperar redenção. Ele só anotou. E fechou a gaveta. A maçã já estava podre.