As redes sociais viraram arenas públicas e os discursos histriônicos que substituem o pensamento crítico pela busca de aprovação, tridentes afiados. Em busca do engajamento e dos tão necessários likes vale tudo. A lacração é um fenômeno complexo. As intervenções enfáticas, provocativas e de um moralismo afetado, urdidas para agradar à plateia, derramam-se sobre a vida contemporânea em total descontrole, valendo-se da falta de sensibilidade, de discernimento e de vergonha. Esse novíssimo ramo da comunicação de massa padece de um grave vício de origem, uma vez que seu objetivo é exclusivamente repercutir (ou viralizar, para ficar numa palavra desse terrível léxico), desprezando a reflexão e a sensatez. Mais que uma ferramenta para troca de informações e acréscimo de saber, a língua serve para que seres humanos identifiquem-se entre si. Os lacradores saem-se admiravelmente bem no exercício dessa segunda função.
Quando uma pauta legítima — a exemplo da demanda por leis para enfrentamento e punição do racismo, a agenda das pessoas com deficiência ou a proteção dos direitos dos homossexuais — é usada como trampolim para gestos e campanhas de autopromoção, prioriza-se a forma em detrimento do conteúdo. O discurso até pode avançar, mas carece de profundidade, torna-se batido, urgindo adaptações constantes, oportunistas e artificiais. A curtida é a meta que se persegue com fervor, o que desencadeia uma espiral de uma violência a princípio silenciosa, mas que ganha corpo. Quem tira vantagem da lacração? Esta é uma pergunta retórica, claro. O aumento no número de seguidores faz com que gente de importância sobrestimada adquira projeção nacional, figure entre o rol de formadores de opinião do país, enriqueça, ao passo que as bandeiras que dizia levantar terminam no fundo de um baú, e aqueles que jurava defender continuam à margem.
O filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) deu um valioso alerta sobre o modo como o poder manifesta-se nos discursos. Não é exatamente uma surpresa que a lacração reproduza as estruturas autoritárias que alega combater, na medida em que impõe modelos de pureza ideológica. O sonho nem tão inconfesso dos lacradores é desterrar os rebeldes, no âmbito virtual e, se possível, também no plano físico, o que muitas vezes acabam conseguindo. As vítimas do linchamento moral das redes, o pérfido cancelamento, perdem o emprego, o patrocínio, o patrimônio. A luta contra a injustiça social é uma poderosa ferramenta de mudança do estabelecido, desde que se separe denúncia de encenação. No mundo fantasioso das tais narrativas, ouvir tem sido uma necessidade inescapável, e a lacração veda qualquer esforço de diálogo. A curtida pela curtida, o like pelo like não é uma coisa natural entre cidadãos que pretendem-se civilizados.