A angústia de não saber ler

A angústia de não saber ler

Foi por teimosia que eu me tornei um leitor compulsivo. Eu estava na segunda-série quando minha mãe me levou para fazer a carteirinha da biblioteca municipal de Taquarituba e me lembro perfeitamente da solenidade que me acometeu diante daquele ritual de aprontar foto 3×4, esperar a bibliotecária datilografar meu nome, data de nascimento, endereço, telefone de casa, depois sair com uma fichinha onde seriam anotados os livros retirados que, após entregues, mereceriam na linha correspondente um carimbo “devolvido” com a data e a assinatura da funcionária.

Naquele início de anos 1990 a biblioteca de Taquarituba era como costumavam ser esses espaços antigamente: um amplo salão mal-iluminado repleto de estantes de móvel escuro, algumas poucas mesas quase sempre vazias ao centro, duas funcionárias de gestos mecânicos sentadas em suas mesinhas em um canto, mesinhas essas empoeiradas e equipadas com máquina de escrever, aparelho telefônico de disco, canetas, papéis, grampeadores e alguns acessórios de papelaria. Como costumavam ser esses espaços antigamente, era um reino de silêncio absoluto — lembro-me que me esforçava até para controlar a respiração no labirinto daquelas estantes, com receio de incomodar os átomos e ser advertido pela bibliotecária com um vexatório psiu, escandido, longo.

Minha mãe me levou para fazer a carteirinha de certo porque já havia percebido que eu gostava de viver entre livros. Fizemos o caminho a pé. Eram apenas duas quadras inteiras, mais especificamente uma meia quadra, uma quadra inteira, outra metade, que separavam minha casa do prédio onde funcionava a biblioteca. De forma um tanto improvisada porque, salvo equívoco de minha mente fatigada, o mesmo equipamento público também abrigava órgãos díspares como o fundo municipal de solidariedade, o conselho tutelar e algum departamento onde os jovens de 18 anos precisavam fazer o alistamento militar obrigatório.

Eu estava calçando chinelos e já vestido com o uniforme escolar. Caminhava um tanto aproado, porque finalmente iria ter minha carteirinha da tal biblioteca e também porque era curioso com o fato de que a nobre e então vetusta instituição emprestava o nome de um tal Professor José Aparecido Castellucci, sobrenome idêntico ao da minha mãe. Vim a saber que era um tio dela, morto precocemente em acidente de trânsito, e que por alguma razão dessas que justificam topônimos em cidadezinhas do interior, coube a ele essa póstuma homenagem. Saiu da vida para virar logradouro, mas talvez os vereadores pensaram que pelo ofício exercido cabia-lhe melhor uma biblioteca do que uma ruazinha de periferia.

Eram duas as funcionárias encarregadas da biblioteca e quem me atendeu foi a M., uma senhorinha de cabelos descoloridos, óculos escorrendo pela ponta do nariz e semblante contrariado. Não se preocupou em me dar boas-vindas àquele universo das letras, tampouco me mostrar como as estantes eram organizadas. Não se incomodou em me indicar nenhum livro inaugural. Não se esforçou nem sequer para sair detrás da mesinha de onde datilografava, tampouco me olhou diretamente nos olhos.

Ela preferiu me deixar no desconforto de ser tratado de forma indireta, isto é, dirigia-se à minha mãe para falar comigo — sabendo que eu estava ali ouvindo, mas como se não pudesse se rebaixar ao diálogo com uma criança. E todas as suas frases, naquela manhã de quarta-feira de março ou abril de 1992 foram para delimitar as regras daquele espaço sagrado. São no máximo três livros simultâneos que podem ser emprestados, entendido? Aqui dentro é silêncio absoluto, certo? Se tirou o livro para olhar, marque de alguma forma o local para devolver exatamente no mesmo lugar. Silêncio absoluto. Não pode atrasar a devolução de forma alguma, nenhum dia. Silêncio absoluto aqui. Só renovamos o empréstimo uma vez. Aqui é silêncio, já falei? O prazo para devolução é de uma semana. Lembre-se de fazer silêncio ao entrar neste espaço. Nada pode sair do lugar. Psiu, silêncio.

Cuidadosamente, num pé ante pé neurótico, encontrei a coleção do Monteiro Lobato e peguei o “Caçadas de Pedrinho” para estrear minha carteirinha de usuário. Um tanto trêmulo, com medo de derrubar tudo e ser banido eternamente daquele ambiente sacro, retirei o volume da estante. Meio gaguejando na ânsia de uma repreensão, entreguei para M., que preencheu a ficha do livro e a minha carteirinha.

No caminho de volta lembro-me apenas de minha mãe dizendo que a partir de então eu poderia ir sozinho nas outras vezes. Eu concordei. Em alguns meses iria completar 8 anos e já era hora de assumir o peso das responsabilidades.

Dali em diante visitei a Biblioteca Municipal José Aparecido Castellucci quase todas as semanas até a minha adolescência. Mas se por um lado era atraído pela perspectiva de novos livros e os sonhos e devaneios que eles me proporcionavam, por outro me angustiava a necessidade de interagir com M. Chegava a ter pesadelos na véspera de uma data de entrega. Não sei se M. não gostava de leitores ou se apenas não gostava de crianças. Parecia que M. preferia que os livros ficassem intocados naquelas estantes, e isto, para ela, poderia até ser um jeito de manifestar o amor pelos livros. Na verdade, não: os livros gostam de ser lidos, manuseados; impedir isso aos livros é justamente castigá-lo com a prisão no alto das estantes, longe do contato humano, longe dos olhos daqueles que riem, se emocionam, choram e viajam por meio das letrinhas impressas. M. odiava livros, de certo. E, por extensão, odiava crianças. Na verdade, devia odiar qualquer coisa que gerasse um ruído naquela rotina que poderia ser um vazio reverberante de somente ficar sentada em uma mesinha 8 horas por dia.  

Aos poucos, para mim, teimoso, ler também assumia o significado de vencer o desafio, de conseguir ultrapassar o obstáculo que era M. naquela biblioteca. Ela me olhava de cima, sempre com ar autoritário, repressor, e parecia tão alta quanto aquelas estantes escuras eram para um menino de pouca idade.    

Percebia que seu incômodo com a minha presença era ainda maior quando eu não me limitava às seções de literatura infantil e juvenil, avançando por outras glebas daquele rincão pouco explorado. Um dia saquei “Os Sobreviventes”, uma edição de 1978 do livro escrito pelo inglês Piers Paul Read sobre o trágico acidente aéreo ocorrido em 1972 nos Andes.

M. olhou bem para a capa, leu alguma coisa talvez nas páginas iniciais, franziu a testa. Meu coração palpitava: por que ela não apressa logo essa parte, já datilografa aí as fichas e me libera para eu voltar correndo para casa?

— Este não.

— Como assim? — balbuciei, nervoso.

— Este não pode. Não é para sua idade.

Eu me quedei impassível. Era um livro. Estava na biblioteca. Como assim não pode? Tem idade para livro?

M. disse que precisava ligar para minha mãe. Eu queria me esconder, se houvesse ali um bueiro sobre meus pés não titubearia. Pensei em sair em disparada, largando livro, carteirinha e interrogação na mesa dela. Resisti.

Ser leitor era uma prova semanal de resistência. De teimosia.

Do outro lado da linha, minha mãe parecia autorizar, foi o que percebi pelo constrangimento murcho de M., entre contrariada e resignada. Venci aquela batalha. Li o livro.

Lembro-me muito desse meu passado entre os livros da Biblioteca Municipal José Aparecido Castellucci cada vez que vou com meu filho à biblioteca aqui de Bled. Felizmente, as bibliotecas mudaram. No mundo todo, ao que parece. Não são mais um espaço de silêncio absoluto. Crianças se sentem em casa, bem-vindas e acolhidas. Há estantes com cores. Algumas baixinhas, para que elas consigam alcançar.

Os bibliotecários sorriem, indicam livros, demonstram alegria com o espaço frequentado e amado. A biblioteca de minha querida Taquarituba também parece seguir esse caminho, é claro — pelo menos é o que, feliz, constato em fotos relativamente recentes que encontrei na internet.

Aí eu me deparo com essa riqueza linda que é a biblioteca de Bled e fico angustiado. Não porque haja uma M. atrapalhando meu caminho, pedra de Drummond que nem permite ser chutada de lado. Mas porque aqui o obstáculo é esta língua eslava dificílima, com seus três gêneros, suas seis declinações, sua falta de artigos, seus diferentes e diversos plurais.

Visito a biblioteca, porque amo bibliotecas, porque me sinto bem-vindo à biblioteca. Mas vivo a angústia de não saber ler.

Meus olhos brilham quando esbarro em obras como as de Machado de Assis — aqui o livro é “Posmrtni Spomini Brása Cubasa” — e de Cristovão Tezza — “Noč v Curitibi”. Mas os mesmos olhos sentem minhas retinas fatigadas de quem não consegue ler porque, se nunca me esquecerei do acontecimento que foi a biblioteca da minha infância, agora enfrento uma diuturna incapacidade frente ao idioma.

Ležal kamen, da je ležal kamen sredi poti, da je sredi poti ležal kamen. 

Edison Veiga

Edison Veiga é escritor e jornalista e vive em Bled, na Eslovênia, desde 2018. Publicou oito livros, entre eles ‘Titereiro’ e ‘O Menino que Sabia Colecionar’.