Em meio à era da hiperconectividade digital, em que os livros eletrônicos prometiam enterrar de vez o papel impresso, testemunhamos um fenômeno curioso. Os sebos, velhos templos do livro usado, têm resistido, e novas livrarias especializadas em volumes de segunda mão estão aparecendo em cidades do mundo inteiro. Leitores recorrem a esses estabelecimentos ávidos por reencontrar publicações que já tiveram e por uma razão qualquer perderam, e aqueles mais pacientes e mais sensíveis ao prazer do garimpo literário nunca deixam as prateleiras empoeiradas sem uma excelente descoberta nas mãos. Os sebos são uma prova incontestável do poder da memória e dos afetos, além, claro, de encarnar, ainda que de maneira simbólica, a força da tradição sobre a tecnologia e o tal progresso, atrabiliário e excludente em muitas ocasiões. E um aviso, sutil e romântico, de que o conhecimento não cai do azul.
Ao contrário dos dispositivos eletrônicos, que padronizam a leitura em telas planas e brilhantes, cada exemplar de papel tem sua história, textura e cheiro. Nas bordas de páginas amarelecidas, eternizam-se notas, observações, registros do que o antigo dono passava, instantes de agonia que uma determinada frase pode ter aplacado. Nos sebos, o leitor foge do algoritmo, vivendo experiências mágicas que os buscadores não recomendariam. Navegar pelas estantes é uma terapia das mais sui generis e eficazes, durante a qual a mente desacelera, respira-se fundo e acha-se lugar para o insólito. Não é exagero dizer que os livros nos encontram, quase como se sussurrassem, implorando por uma chance. Não bastassem ser caros, livros, mormente no Brasil, padecem cada vez mais da crise de confiança que atribui valor a escritores famosos, marqueteiros, panfletários, artificiais, medíocres. Esses raramente estão nos sebos.
Num mundo premido pela lógica do descartável e da obsolescência sistemática e proposital, livros físicos permanecem ganham status de um talismã fetichista, que representa a profundidade e o eterno, embora seja forçoso reconhecer que livrarias de todos os feitios, as da moda e as de outros tempos, acusem o golpe da venda online, que barateia o produto ao fazê-lo chegar, sem a intermediação de terceiros, à casa do leitor. Lamentavelmente, o fenômeno tem alcance global, a exemplo do que se assiste no ótimo “The Booksellers: Livreiros de Nova York” (2019), de D.W. Young, em que medalhões feito Gay Talese e Fran Lebowitz tecem suas impressões a respeito das glórias e pesares dos donos de livrarias e livreiros antiquários na Grande Maçã, que até os anos 1950 chegou a ter 389 lojas de livros, boa parte delas dos “judeus baixinhos e cobertos de pó da Quarta Avenida”, nas palavras de Lebowitz, e hoje conta menos de oitenta.
Seguremos o réquiem, todavia, porque livros nunca morrem, e se livros não morrem livrarias — e, por extensão, sebos — não hão de sumir. Quiçá o hipótese mais provável seja a de que os livros como os conhecemos tornem-se ainda mais tímidos, sufocados pela avalanche digital que ninguém mais segura. Se não houver mais nenhum livro na praça, sigo confiante para a Ideal, na rua Visconde de Itaboraí, no centro de Niterói, para escarafunchar sozinho tesouros de dias que poderiam jamais ter acabado.