Minha experiência com “Harry Potter” resume-se a, no início da tarde de um dia qualquer de 1997, passar os olhos na capa espalhafatosa do volume na estante de um shopping próximo à escola que frequentava, consultar o índice, ler umas tantas páginas e não sentir coisa alguma. Talvez me considerasse, já naquela época, um velho aos quinze anos de idade tenríssima e até inconscientemente rejeitei o que ia ali, mas o caso é que há livros que pegam-nos ou não. Nasci velho, porém muita gente chega ao mundo com sua idade cronológica ajustada à natureza da vida como ela é, e dessa forma, a mina de ouro descoberta por J.K. Rowling têm sua razão de ser.

Para além de um fenômeno literário e, não muito tempo depois, cinematográfico, “Harry Potter” tornou-se um romance de formação para crianças e adolescentes crescidos entre o final dos anos 1990 e meados dos anos 2010. Eles não apenas acompanharam a saga do bruxinho como amadureceram junto com a história, literalmente. “Harry Potter e a Pedra Filosofal” (1997) desdobrou-se em sete livros e oito longas, mantendo em grande medida o discurso da honra e da coragem como norte para se encontrar os amigos desinteressados e leais e o verdadeiro amor, com larga margem para a exploração de temas indigestos como luto, preconceito e isolamento. Esse público começou a ter suas noções elementares de justiça — e, mais ainda, da falibilidade da justiça —; que o bem não é tão poderoso assim e que o mal recorre aos disfarces mais engenhosos e às artimanhas mais sedutoras; e que, mesmo assim, com tudo jogando contra, há que se perseverar. Adianta? Nem sempre, mas essa é uma outra discussão.
O sistema educacional como o conhecemos acaba por buscar tecnicismos e conter ou mesmo fazer pouco da formação subjetiva. Enquanto isso, a literatura e, por que não?, “Harry Potter” encarregam-se de traduzir os códigos menos cartesianos da vida, e nisso Rowling é mestra. A autora sabe fomentar a dúvida e, a partir daí, criar vínculos entre leitores e seus personagens. Quantos não aprenderam a identificar comportamentos e métodos opressivos observando Dolores Umbridge, a sádica e ambiciosa bruxa mestiça, para mais tarde vir a entender o que é totalitarismo? Quantos não sentiram com a morte de Dumbledore, o diretor de Hogwarts, a dor análoga à de perder alguém da família? Vivências como essas, malgrado restritas ao plano da ficção, são transformadoras.
Numa época em que a internet já campeava, “Harry Potter” teve o mérito de reunir milhares de adolescentes nas livrarias, ansiosos por cada novo lançamento. Isso foi um feito para o mercado editorial, sem dúvida, mas deve ser encarado também como um fenômeno, o princípio de uma modesta revolução que, para o bem e para o mal, repete-se de quando em quando, nem sempre espelhando a qualidade da narrativa ou a sofisticação da trama. Crianças que nunca haviam chegado à última página de um livro passaram a ter paciência e apetite para devorar com gosto volumes de quinhentas páginas, processo em cuja esteira despontaram a habilidade crítica e, nos melhores casos, o talento para elaborar seus próprios textos — competências que a escola, muitas vezes, tenta inculcar sem muito sucesso. Não se trata de pôr “Harry Potter” acima da escola, mas de admitir que educação tem muito a ver com sentido e encantamento. A conclusão, tão perturbadora quanto óbvia, é que J.K. Rowling soube valorizar aquilo a que a escola devotava um menosprezo sistemático e militante. À vencedora, as batatas, como diria um bruxo muito mais do meu agrado.