Eleito um dos melhores filmes de todos os tempos, clássico de Roberto Benigni está de volta à Netflix Divulgação / Melampo Cinematografica

Eleito um dos melhores filmes de todos os tempos, clássico de Roberto Benigni está de volta à Netflix

A salvação é um encargo que cada um administra conforme sua própria medida de conveniência. É sempre possível, claro, que após uma vida de erros — muitos deles implicando a desdita de outras pessoas — alguém se arrependa de fato, refaça seus passos, se policie com zelo quase paranoico diante da menor chance de repetir falhas que deixaram cicatrizes em quem teve a má sorte de cruzar com sua perversão num tempo qualquer. As grandes transformações sociais não nascem do grandioso, mas do mais ínfimo, do desprezado, às vezes até do abjeto espírito humano, esse que parece frágil e insignificante, mas que, no fundo, desconhece o alcance da força que carrega.

É com essa premissa — ainda que não dita em voz alta — que o enredo alegórico de “A Vida É Bela” se constrói. Guido Orefice, com imaginação afiada e estoicismo incansável, cria para o filho uma farsa amorosa e absurda que mascara a realidade brutal da Segunda Guerra Mundial. Os nazistas são os vilões de um jogo que precisa ser vencido. O roteiro, escrito por Benigni com Vincenzo Cerami, parte de uma experiência pessoal: Luigi, pai do diretor, sobreviveu a um campo de concentração — não para negá-lo, mas para torná-lo suportável. Essa herança de ternura bruta atravessa os 116 minutos do filme, sustentando uma narrativa que alterna ingenuidade e horror com equilíbrio desconcertante.

Tocam a natureza do milagre os momentos em que figuras comuns — absolutamente ordinárias — se movem por afetos que não cabem na lógica. Ninguém percebe quando começa. A graça de Guido está nisso: não se apresenta como herói, nem deseja sê-lo. Apenas inventa uma forma de preservar a infância do filho, Giosué, num dos lugares mais inumanos da história recente. É aí que o filme alcança seu ponto mais delicado. Sempre que uma criança perde a inocência, algo na humanidade inteira se desfaz. E Guido sabe disso. Por isso, protege não o corpo, mas o olhar do filho. A maneira como ele escolhe manter viva a fantasia é o que torna sua figura, ao mesmo tempo, patética e comovente.

A crítica, claro, não perdoou. Muitos torceram o nariz para a comédia entre os barracões. Houve quem dissesse que o tom era leviano, que a leveza beirava a banalização. Mas nada ali é leviano. Benigni, com seu corpo sempre à beira do grotesco, equilibra humor e tragédia como quem não vê separação possível. Quando finalmente divide cena com o pequeno Giorgio Cantarini, o filme ganha fôlego e afeto. A química entre os dois sustenta até o desfecho, sem apelar ao sentimentalismo fácil.

É compreensível que ainda haja quem guarde ranço pela vitória sobre “Central do Brasil” no Oscar de 1999. Mas já passou da hora de reconhecer que “A Vida É Bela” não venceu por acaso. Venceu porque soube tocar fundo em algo que não depende de nação ou tempo: o desejo de proteger, a qualquer custo, aquilo que ainda nos resta de puro. E se isso não for digno de prêmio, talvez os prêmios é que tenham perdido o critério.

Filme: A Vida É Bela
Diretor: Roberto Benigni
Ano: 1997
Gênero: Comédia/Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★
Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.