Quando a vida não basta, criamos histórias para viver na pele de outros. Ver o mundo por outros olhos. Enxergar diferentes lugares. Mas nem sempre a ficção transcende a vida. Muitas vezes, é a própria vida que mostra à ficção sua grandeza. É o caso dessas histórias aqui, selecionadas pela Revista Bula para provar que a realidade pode ser mais louca, imprevisível e arrebatadoramente insuperável. Escolhemos algumas obras do cinema inspiradas em situações ou pessoas reais — filmes que são exemplos de resiliência, determinação, genialidade ou até mesmo loucura.
Muitas vezes, a realidade escapa ao previsível e mostra como somos capazes de sobreviver às mais extremas circunstâncias ou nos transformar para continuar resistindo. O cinema faz com que essas histórias sobrevivam ao esquecimento e ao tempo, lembrando-nos de que a vida vai muito além do bem e do mal. Somos seres humanos em busca da plenitude, de alcançar nosso melhor e agir por razões maiores. O cinema, essa arte modesta e democrática, leva histórias e nos inspira diariamente, ajudando-nos a crer que pertencemos, que nossos sentimentos são universais, embora cada humano seja único.
Essa lista, com filmes de diversos streamings, revela como, por trás das notícias de jornais, há pessoas vivendo narrativas reais complexas, cheias de camadas e densidade. Aqui, o tempo para. Para para dar passagem à história. Para para abrir caminhos à humanidade e revelar as emoções mais íntimas, sejam elas de intenções claras ou difusas, grandes ou singelas.

Em 1972, um avião uruguaio transportando um time de rúgbi cai nos Andes, deixando sobreviventes presos em condições extremas. Baseado em relatos reais e no livro homônimo, “A Sociedade da Neve” narra, com intensidade emocional e visual arrebatador, a luta brutal desses jovens contra a fome, o frio e o isolamento absoluto. Em um ambiente inóspito, a solidariedade e o desespero se entrelaçam, levando-os a tomar decisões extremas para sobreviver. Longe de glamourizar a tragédia, o filme humaniza seus personagens e expõe o trauma e a resiliência daqueles que sobreviveram ao impossível. J.A. Bayona conduz a narrativa com respeito e profundidade, criando uma experiência cinematográfica que não busca o sensacionalismo, mas sim a compreensão da fragilidade e da força humanas diante do limite da existência. Uma história que, décadas depois, ainda assombra e inspira.

Inspirado em um dos casos de feminicídio mais emblemáticos do Brasil, Ângela recria a trajetória da socialite Ângela Diniz e seu relacionamento conturbado com o empresário Doca Street, que culminou em seu assassinato brutal em 1976. Estrelado por Ísis Valverde, o filme mergulha no universo da alta sociedade carioca da década de 1970 e nos bastidores machistas que moldaram a narrativa do crime na imprensa da época. Mais do que reconstituir os fatos, Ângela busca devolver voz e complexidade a uma mulher que foi, por décadas, reduzida a estereótipos e julgamentos morais. A obra evidencia o quanto o crime foi tratado com condescendência social e jurídica, e como ele antecipou discussões que hoje permeiam o debate sobre violência de gênero no Brasil. Um filme necessário, que revisita o passado para iluminar feridas ainda abertas no presente.

O filme reconta o impressionante resgate do time de futebol juvenil preso em uma caverna inundada na Tailândia, em 2018, que mobilizou equipes de mergulhadores, especialistas e voluntários do mundo inteiro. Em uma operação marcada por riscos extremos, estratégias improvisadas e tensão crescente, “Treze Vidas” destaca o espírito colaborativo internacional e o heroísmo silencioso de pessoas comuns que colocaram suas vidas em risco por desconhecidos. Ron Howard evita o melodrama fácil e aposta na reconstrução meticulosa dos bastidores técnicos e emocionais do resgate, revelando o peso psicológico que envolveu cada decisão. O elenco, liderado por Viggo Mortensen e Colin Farrell, dá vida aos mergulhadores que enfrentaram um labirinto submerso e o relógio implacável da natureza. Mais do que um relato de aventura, o filme celebra a compaixão e a solidariedade humanas em sua forma mais pura.

Baseado em um dos julgamentos mais controversos da história dos EUA, o filme reconstitui o processo contra sete ativistas acusados de conspiração e incitação à violência durante protestos contra a Guerra do Vietnã em 1968. Em meio ao clima repressivo do governo Nixon, o tribunal se torna palco de uma disputa não apenas legal, mas ideológica, onde o direito à manifestação e a perseguição política colidem frontalmente. O roteiro ágil e irônico de Aaron Sorkin coloca em evidência o choque entre a juventude contestadora e o sistema judicial conservador, enquanto o elenco afiado (incluindo Sacha Baron Cohen e Eddie Redmayne) dá vida a personagens que encarnam a diversidade e os conflitos da contracultura americana. “Os 7 de Chicago” não apenas revisita um episódio histórico, mas dialoga com temas urgentes como autoritarismo, racismo institucional e liberdade de expressão, que ainda ecoam no mundo atual.

Inspirado na história real de William Kamkwamba, um adolescente do Malawi, o filme narra como, em meio à pobreza extrema e à fome que assolavam sua comunidade, ele constrói uma turbina eólica usando peças recicladas e livros de ciências da escola local. Expulso da escola por falta de pagamento, William se recusa a aceitar a fatalidade que condenava seu povo à escassez. Com inventividade e persistência, enfrenta o ceticismo da comunidade e as dificuldades impostas por um ambiente político negligente. O filme retrata a luta silenciosa dos povos africanos por autodeterminação e sobrevivência, fugindo de clichês caritativos e ressaltando a inteligência e a resistência local. Dirigido e protagonizado por Chiwetel Ejiofor, “O Menino que Descobriu o Vento” é um relato inspirador sobre educação, esperança e ação comunitária, que transforma a realidade por meio da ciência e da solidariedade.

Misturando humor ácido e drama visceral, Eu, Tonya reconstrói a trajetória turbulenta da patinadora artística norte-americana Tonya Harding. Vinda de uma infância marcada por abusos e precariedade econômica, Tonya desafia o elitismo do esporte e conquista notoriedade pelas habilidades na pista. Porém, sua carreira entra em colapso após o polêmico ataque à rival Nancy Kerrigan, planejado por pessoas próximas a ela. Narrado em estilo documental e repleto de depoimentos contraditórios, o filme brinca com a instabilidade da memória e da verdade, apresentando uma Tonya complexa: vítima, vilã, sobrevivente e rebelde. Margot Robbie entrega uma performance intensa, que desconstrói os estereótipos em torno da atleta. “Eu, Tonya” é mais do que um relato esportivo: é um olhar crítico sobre o espetáculo midiático, o machismo e a violência social que moldam — e destroem — figuras públicas, especialmente mulheres que ousam sair do papel esperado.

Este drama biográfico retrata a juventude e ascensão do físico britânico Stephen Hawking, um dos maiores cientistas contemporâneos. A trama acompanha seu romance com Jane Wilde, a descoberta precoce da esclerose lateral amiotrófica (ELA) e o impacto devastador da doença em sua vida pessoal e profissional. Mesmo com a deterioração progressiva de seu corpo, Hawking desafia diagnósticos e limitações físicas para expandir as fronteiras da cosmologia, buscando uma explicação para a origem do universo. Mais do que um relato científico, o filme revela o cotidiano íntimo de um homem dividido entre a fragilidade humana e a grandiosidade intelectual. Com uma interpretação marcante de Eddie Redmayne, que lhe rendeu o Oscar de Melhor Ator, A Teoria de Tudo equilibra brilhantemente a genialidade acadêmica e a vulnerabilidade emocional, expondo o custo pessoal por trás das conquistas que mudaram a ciência e a forma como enxergamos a existência.