Há livros que nos acompanham como fantasmas. Encerramos a leitura, fechamos o volume, mas o enredo permanece latejando em alguma parte da consciência, como uma chaga. Por que certas obras parecem recusar o fim? A resposta não é simples, pois envolve a profundidade emocional que os livros são capazes de gerar, quão densas podem ser suas imagens, a identificação do leitor com os personagens e, o principal, a verdade bastante particular da narrativa, a verdade inventada. Esses livros, mágicos para cada um, fazem alguma revelação talvez óbvia, para a qual, por motivos insondáveis, não havíamos atentado. Sem a obrigação de dar respostas — e, ao contrário, fomentando mais perguntas, mais e mais incômodas —, adicionam outra dose de balbúrdia ao caos que rege a alma humana, preparando quem os desbrava para a mudança.
Livros têm o poder de transformar porque são, antes de tudo, uma travessia silenciosa pela vida de outro. Ao pousar os olhos sobre suas páginas, somos convidados a sair de nós mesmos, chorar outras dores, trocar a realidade pela fantasia e o mal pelo bem. Não há leitura que não nos toque de algum modo e, ainda que resistamos, um turbilhão sacode-nos com força. Um livro pode ser o espelho que esfrega-nos na cara aquilo que somos, malgrado não gostemos, e esse movimento acaba por nos empurrar para um mundo que não sabíamos existir. Para chegar-se à iluminação dos livros há que se buscar a treva mais silenciosa e profunda, como a semente, que refugia-se no seio da terra antes de germinar e dar fruto. Convicções são abaladas, fronteiras expandem-se, medos se desvanecem. Quem se abre para os livros flerta com o sagrado.
Obras como “O Estrangeiro”, de Albert Camus (1913-1960), “O Processo” (1925), de Franz Kafka (1883-1924), ou “Grande Sertão: Veredas” (1956), de João Guimarães Rosa (1908-1967), seguem para muito além do desfecho das histórias que narram. O primeiro contato pode dar-se com certa fluidez, quiçá até numa estranha agilidade; contudo, ao passo que estreita-se a relação entre o que lê e o autor, mediada por aquele talismã fetichista, rompe-se o gelo e vem o choque, tirando o chão e o sossego. Na nossa lista, junto com “O Estrangeiro”, “O Processo” e “Grande Sertão: Veredas”, entram mais cinco publicações cujos enredos não abandonam o pobre infeliz que por eles se aventura. Esses livros não acabam porque, no fundo, vivem em nós.

“O Livro do Desassossego”, de Fernando Pessoa — atribuído ao semi-heterônimo Bernardo Soares — é uma das obras mais singulares da literatura portuguesa e mundial. Trata-se de uma coleção fragmentária de pensamentos, reflexões, sonhos e angústias existenciais, reunidos sem ordem cronológica, como se fossem páginas soltas da alma. Longe de oferecer uma narrativa linear ou uma história convencional, o livro mergulha o leitor em um estado constante de introspecção e desalento. A linguagem é de uma beleza densa, melancólica e poética, marcada pela contemplação do tédio, da solidão e da irrealidade da vida cotidiana. Bernardo Soares, uma espécie de alter ego de Pessoa, é um ajudante de guarda-livros que vive uma existência cinzenta, quase invisível, mas profundamente rica em sensações interiores. O desassossego, aqui, não é um drama gritante, mas uma inquietação sutil, filosófica, que dilui os contornos do eu. A obra questiona o sentido da identidade, da realidade e da escrita, como se o próprio ato de pensar fosse uma forma de se desfazer. Em vez de consolo, oferece vertigem. Em vez de respostas, abismos. Um livro que desconcerta porque revela, sem filtros, a dor de simplesmente existir.

“A Hora da Estrela”, de Clarice Lispector, é uma obra curta, mas imensamente densa, que transborda inquietação existencial, crítica social e metaficção. Narrado por Rodrigo S.M., um alter ego da autora, o romance expõe a fragilidade de Macabéa, uma nordestina miserável que migra para o Rio de Janeiro em busca de algo que nunca se define — talvez amor, sentido ou apenas visibilidade. Macabéa é a anti-heroína por excelência: apagada, ingênua, sem beleza, sem ambição. E é justamente essa ausência que incomoda, pois revela uma vida cuja dor é silenciosa e socialmente ignorada. Rodrigo, ao tentar dar forma e voz à moça, revela mais sobre si mesmo do que sobre ela, tornando a narrativa um espelho quebrado entre autor, personagem e leitor. A linguagem, típica de Clarice, é cortante, reflexiva, cheia de rupturas e desvios que desestabilizam qualquer expectativa tradicional de enredo. O romance questiona a escrita, o papel do narrador e a própria existência — tudo sem perder o foco na denúncia da desigualdade, da invisibilidade social e da banalização da morte. Ao final, “A Hora da Estrela” não acaba, apenas ecoa: a morte de Macabéa é também um grito mudo por todas as vidas que nunca chegam a ter importância.

Como Dante Alighieri (1265-1321), Guimarães Rosa também se meteu a inventar uma língua própria. Em “Grande Sertão: Veredas”, o autor amalgama gírias, regionalismos, as falas arcaica e moderna, sem nenhum pejo de ferir a susceptibilidade do cânone. A sabedoria do mundo para Rosa é a das gentes dos intestinos do Brasil, todas elas se ajuntando na deserdão das Gerais. Épico e moderno, clássico e revolucionário, “Grande Sertão: Veredas” aborda, como só Guimarães Rosa mesmo seria capaz, o misticismo, o heroísmo, a vilania, a metafísica do homem do campo, do lavrador, do vaqueiro, mas também sua natureza telúrica, em que o chão sagrado das veredas mineiras é o maná do conhecimento mais profundo. Já no nome de seu protagonista, Rosa faz menção à importância dos recursos naturais, em especial da água, e de sua preservação como condição fundamental para a vida do homem — e o sertanejo, antes de tudo um sábio, tem isso entranhado em sua carne dura. Guimarães Rosa toda a vida foi um visionário, um sujeito que enxergava muitos planaltos à frente de seu tempo, e expunha, entre muitos dos argumentos de “Grande Sertão: Veredas” o caos da vida na Terra patrocinado pelo caráter predatório do gênero humano, ávido por consumir, por destruir, por (des)matar. Riobaldo, ex-jagunço, vai narrando, entre desconfiado e solícito, suas pelejas, seus anseios, seus deleites, suas agruras. E o amor, que tenta a todo custo sufocar, por Diadorim.

A luta pela sobrevivência impele-nos a assumir uma postura mais agressiva diante dos outros e esse personagem não demora a ser incorporado à nossa natureza, com a providencial ajuda das várias dificuldades que se agigantam nos cenários extremos em que a vida, caprichosa, transforma-se num palco tétrico onde se chega para matar ou para morrer. Indivíduos são esbulhados de seu arbítrio e de sua sensibilidade e se convertem num prolongamento da consciência coletiva, não pensam mais pela própria cabeça e veem-se obrigados a se submeter a expedientes os mais vis, não por covardia, mas por não poderem contar com ninguém. Ao suscitar questões como truculência policial, intolerância, patrulhamento ideológico, políticos ineptos, juventude perdida e delinquente, “1984” é um monumento imperecível à liberdade em seu conceito mais elementar, partindo dele para elaborações bem mais sofisticadas e herméticas, que até passam batidas em meio à insânia do nosso tempo, capaz de converter em democracias governos flagrantemente abusivos e mesmo totalitários. Publicado em 1949 por George Orwell (1903-1950), “1984” de tempos em tempos balança a letargia que abestalha-nos a todos, decerto porque a realidade sempre consegue ser mais cruel.

Publicado em 1942, “O Estrangeiro” é uma das obras mais emblemáticas do existencialismo e do pensamento do absurdo. O romance narra a história de Meursault, um homem apático e indiferente diante da vida, que vive sob uma lógica fria e racional, desprovida de emoção. A trama tem início com a morte de sua mãe, evento que ele encara com extrema indiferença, o que choca a sociedade ao seu redor. Camus constrói um protagonista que desafia os valores tradicionais, como empatia, moralidade e religiosidade. Meursault não mente para se encaixar ou agradar, e sua honestidade brutal o torna um estrangeiro no mundo. A segunda parte do livro foca no julgamento de Meursault por ter matado um árabe, mas sua condenação parece mais ligada à sua frieza diante da morte da mãe do que ao crime em si. A linguagem é direta, seca e coerente com a personalidade do protagonista. O romance é uma reflexão profunda sobre a condição humana, a ausência de sentido e a busca de autenticidade em um mundo absurdo. O Estrangeiro permanece uma leitura provocadora, que convida o leitor a questionar suas próprias crenças e reações diante da vida e da morte.

“Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, é um retrato cru e pungente da miséria no sertão nordestino, centrado na trajetória de uma família de retirantes assolada pela seca e pela pobreza extrema. A prosa seca e econômica do autor reflete a aridez do ambiente e das emoções das personagens, que muitas vezes mal conseguem articular o próprio sofrimento. Fabiano, Sinhá Vitória, os dois filhos sem nome e a cadela Baleia são figuras que encarnam o abandono social, o analfabetismo, a fome e o silenciamento da condição humana. Graciliano constrói um universo em que o tempo é circular, a esperança é escassa e a brutalidade é rotina — não apenas a brutalidade da natureza, mas também a das instituições. A narrativa fragmentada reforça a sensação de um cotidiano estagnado e repetitivo, onde a sobrevivência é o único objetivo. O sertanejo é mostrado não como herói, mas como vítima de uma engrenagem impiedosa. A linguagem despojada e precisa intensifica o impacto emocional, evitando sentimentalismos. A cadela Baleia, com sua humanidade silenciosa, é talvez a personagem mais trágica e simbólica da obra. “Vidas Secas” é, ao mesmo tempo, denúncia social, estudo psicológico e obra-prima da literatura brasileira.

“O Som e a Fúria”, de William Faulkner, é uma obra fundamental da literatura modernista, marcada por sua complexa estrutura narrativa e profunda carga emocional. A trama gira em torno da decadência da família Compson, uma aristocracia sulista em ruínas, apresentada por meio de quatro perspectivas distintas, cada uma oferecendo uma visão fragmentada e subjetiva dos acontecimentos. A técnica do fluxo de consciência, especialmente nos capítulos narrados por Benjy e Quentin, mergulha o leitor nas profundezas do trauma, do tempo e da memória, tornando a leitura desafiadora, mas enriquecedora. Faulkner desconstrói o tempo linear e explora as fissuras psicológicas de seus personagens, enfatizando temas como a perda, o fracasso moral, o racismo e o papel da mulher no Sul dos Estados Unidos. Caddy, embora nunca narre diretamente, é o eixo emocional da narrativa, sendo lembrada de forma idealizada, conflituosa ou dolorosa por seus irmãos. A linguagem densa e simbólica do autor exige do leitor uma atenção redobrada, mas recompensa com uma compreensão mais rica das angústias humanas. O romance é, acima de tudo, uma meditação sobre o colapso das estruturas tradicionais — familiares, sociais e mentais — diante de um mundo em transformação. Faulkner não oferece respostas fáceis, mas propõe uma experiência literária intensa e única, onde forma e conteúdo se entrelaçam para revelar a fúria contida no som do silêncio e da memória.

“O Processo”, de Franz Kafka, é uma parábola sombria e perturbadora sobre a opressão burocrática, a alienação e a impotência do indivíduo diante de um sistema incompreensível. O protagonista, Josef K., é preso sem saber por quê e, ao longo da narrativa, mergulha em um labirinto kafkiano de audiências, absurdos legais e autoridades invisíveis. A acusação nunca é revelada, tampouco se vislumbra possibilidade real de defesa, evidenciando a arbitrariedade de uma justiça que oprime sem se explicar. A linguagem precisa e fria acentua a sensação de desamparo e sufocamento. K., cada vez mais paranoico e resignado, passa a questionar não apenas o sistema, mas sua própria culpa — como se a lógica do absurdo exigisse uma culpa anterior à ação. Kafka não oferece saídas: o livro termina com a execução do protagonista, selando um destino sem catarse nem redenção. A metáfora jurídica é, na verdade, existencial: fala da culpa ontológica, da solidão moderna e da fragilidade do sujeito diante de instituições que já não compreende. “O Processo” é uma denúncia silenciosa do absurdo da modernidade e um espelho angustiante da condição humana.