Há livros que não nos transformam. Nos destroem com delicadeza. Não como um incêndio, mas como a erosão contínua de algo que estava mal fixado. Você começa a ler acreditando que há um trilho, uma margem, um ponto de equilíbrio. Mas não há. O que existe, na verdade, é um lento deslocamento. Da linguagem, da moral, daquilo que chamávamos de realidade. A certa altura, você percebe que já não é o mesmo leitor. Que, talvez, já não saiba mais ler da mesma forma.
Algumas narrativas têm esse efeito de desordem íntima. Não por exibirem violência ou escândalo, mas porque mexem em silêncios que levamos anos para tornar suportáveis. Às vezes, elas chegam com a secura de uma paisagem húngara onde tudo apodrece devagar e alguém promete salvação apenas para esvaziá-la de novo. Outras vezes, carregam o cinismo gelado de um pai que ama tanto que corrói. Ou têm a fúria sensível de um corpo que não se dobra mais, nem à norma, nem ao desprezo. Ou ainda o ritmo frenético de uma busca por alguém desaparecido em que, ao fim, é a própria linguagem que já sumiu.
Esses livros são como facas que cortam sem pressa. Não buscam reviravoltas espetaculares, embora algumas tragam. O que fazem é mais sutil. Reorganizam o chão. As certezas de certo e errado, beleza e feiura, amor e obsessão, todas elas ficam embaralhadas, pedindo para serem repensadas. E isso dói. Mas também liberta.
Sim, há quem leia para descansar. Mas há também os que leem para desorganizar. Para lembrar que a literatura pode não oferecer cura e ainda assim ser indispensável. Porque há experiências que só a linguagem é capaz de captar. E há feridas que, uma vez nomeadas, já não se escondem tão facilmente.
Essas histórias não oferecem volta. E, talvez, seja justamente isso o que as torna tão necessárias agora.

No coração do Parque Sarmiento, em Córdoba, pulsa uma comunidade travesti que reinventa o mundo à margem. A narradora — também travesti, também filha do abandono — regressa ao espaço onde um dia foi acolhida e narra a história do grupo que a tornou possível. São mulheres expulsas de casa, da escola, da igreja e do nome de batismo, que reinventam afetos sob a regência da Tia Encarna, figura materna e feroz, que recolhe corpos e almas à deriva. Tudo se inicia quando encontram um bebê largado no mato e decidem criá-lo como uma de suas iguais. A partir daí, o romance expande e recolhe suas cenas como um canto de vozes em harmonia dissonante: há violência, prostituição, festas, suicídios, feitiçaria e ternura. A escrita alterna lirismo e brutalidade com fluidez quase encantatória. Não há linearidade — há memória, confissão, delírio. A protagonista observa o mundo com dor e desejo, consciente da condição limítrofe de sua existência. Cada personagem é, ao mesmo tempo, real e fabular, como se o Parque fosse território mágico e campo de batalha. Entre a solidão e o coletivo, entre o horror e o riso, o romance constrói uma cosmologia própria, onde viver não é apenas resistir, mas criar um sentido íntimo e feroz para existir fora do destino imposto.

Lucie Toledo não é uma detetive exemplar. Hesitante, pouco carismática e sem grandes ambições, ela sobrevive entre casos banais e crises de autoestima. Quando aceita investigar o desaparecimento de Valentine, uma adolescente inquieta de classe média alta, é obrigada a trabalhar com a lendária “Hiena” — figura temida nos bastidores da investigação privada. A busca as conduz por ruas de Paris, subúrbios desencantados, clubes lésbicos, festas decadentes e até Barcelona, numa espiral cada vez mais vertiginosa. A narrativa se fragmenta em múltiplas vozes: cada personagem ocupa sua vez ao microfone com brutal honestidade, desnudando neuroses, desejos e pequenas violências cotidianas. O ritmo é veloz, cortante, oscilando entre o thriller e o manifesto, com cortes secos que lembram montagem de cinema punk. Despentes confronta o politicamente correto com sarcasmo e ternura, desmontando identidades de gênero, crítica social e hipocrisias de classe sem perder de vista o afeto. A investigação torna-se também um mergulho em zonas de sombra – das personagens e da sociedade – onde o desaparecimento de Valentine é apenas o ponto de ignição. Tudo vibra em intensidade, e nada retorna ao estado anterior. Entre cinismo e solidariedade inesperada, o romance afirma que sobreviver exige mais do que encontrar alguém: exige confrontar o que se finge não ver.

Hofmeester vive como quem evita a própria vida: ocupando a cozinha com minúcia obsessiva, calculando palavras, controlando silêncios. Seu mundo encolheu desde que a esposa o abandonou e, agora, sente que o vínculo com a filha mais nova, Tirza, é a última âncora antes do vazio. Quando ela decide viajar para a África acompanhada de um jovem que desperta em Hofmeester um medo atávico — por razões que ele não compreende ou não verbaliza — algo se desmancha dentro dele. A narrativa entrelaça os dias claustrofóbicos em Amsterdã e a travessia pelo deserto da Namíbia, num percurso que parece tanto físico quanto mental. A voz narrativa, precisa e implacável, expõe as fraturas do protagonista com uma ironia quase cruel, jamais apelando à autopiedade. Há uma tensão constante entre civilidade e barbárie, entre o amor paternal e o desejo de controle. O romance avança com lentidão incômoda, recuando às vezes para cenas domésticas de uma banalidade insuportável, até que a revelação não se dá em explosões, mas em rachaduras acumuladas. Nada em Hofmeester é confiável — nem sua lógica, nem suas memórias — e é nesse terreno movediço que o livro constrói sua força. Um retrato desconcertante do autoengano, do desespero e daquilo que resta quando já não se tem ninguém a quem proteger.

A lama cobre os caminhos de uma aldeia esquecida, onde o tempo parece hesitar. Abandonados pela cooperativa agrícola, os poucos moradores que restam sobrevivem entre ruínas e silêncios, até que a notícia da volta de Irimiás — dado como morto — perturba o equilíbrio apático que sustentavam. Ele chega com palavras redentoras, insinuando planos e destinos coletivos, e logo se instala como figura de liderança ambígua. O romance articula um jogo hipnótico de expectativas, manipulação e fé, conduzido por uma voz narrativa mutante, por vezes cruel, por vezes lírica. A estrutura em espiral — inspirada no ritmo do tango — fragmenta a linearidade e projeta o leitor em uma dança de avanços e retrocessos, onde a cada passo se revela mais da miséria emocional e moral de seus personagens. A desconfiança fermenta em cada gesto, mas também a necessidade de crer em algo maior que o lodo. No compasso arrastado do cotidiano, há uma tensão permanente entre decadência e ressurreição, e a paisagem — quase sempre chuvosa, quase sempre imóvel — age como extensão da alma dos que ali permanecem. O texto não se apressa, exige entrega, e oferece em troca um mergulho incômodo na fragilidade humana, na ilusão como sustento e no desamparo como condição partilhada.