Existe hoje um mercado muito ativo de livros, autores e leitores no chamado Atlântico Sul. Um vai-e-vem em língua portuguesa, formando um triângulo literário entre europeus, brasileiros e africanos. Essa circulação de ideias, experiências e formas narrativas tem produzido uma constelação de obras que escapam dos antigos centros coloniais e renovam o idioma comum com vozes múltiplas e enraizadas em realidades muito distintas.
Há tempos sabia-se que uma geração inteira das antigas colônias de Portugal na África devorou Jorge Amado, Guimarães Rosa e Graciliano Ramos. Esses escritores brasileiros, com suas vozes híbridas e suas representações complexas da oralidade, da violência e da resistência, encontraram eco em jovens leitores africanos que buscavam, ali, modelos possíveis de escrita e pertencimento. A leitura, nesse caso, foi também um gesto de apropriação e reinvenção. Não por acaso, o resultado dessa devoração criativa foi uma produção literária impressionante, que aportou no Brasil com força e brilho.

Com as assinaturas de José Eduardo Agualusa, Pepetela, Gonçalo M. Tavares, Ondjaki, José Luandino Vieira, José Craveirinha, os livros vindos de Angola, Moçambique e outras regiões lusófonas passaram a ocupar lugar de destaque nas estantes e prêmios do mundo de língua portuguesa. São vozes que dialogam entre si, e também com o Brasil, em um circuito que contesta as hierarquias herdadas do colonialismo e propõe uma nova cartografia literária.
Entre esses nomes, talvez o mais conhecido do público brasileiro seja o de Mia Couto, autor moçambicano que desenvolveu uma obra profundamente original e tocante. Nascido em 1955, estudou em escola europeia para brancos, conforme ditavam as regras do apartheid colonial. Mas sua vivência foi muito mais ampla e permeada por outras influências: nas ruas de Moçambique, conviveu intensamente com negros, indianos e chineses, em um ambiente de diversidade cultural que se tornaria matéria viva de sua escrita.
Essa experiência heterogênea moldou um estilo, que se alimenta da oralidade e incorpora palavras de línguas africanas locais, criando um português mestiço, impregnado de imagens, ritmos e invenções. É uma escrita que desafia a norma e transforma a língua herdada em instrumento de reinvenção. “Sou um escritor africano e de língua portuguesa”, declarou certa vez. “Porque o idioma estabelece o meu território preferencial de mestiçagem, o lugar de reinvenção de mim. Necessito inscrever na língua do meu lado português a marca da minha individualidade africana. Necessito tecer um tecido africano e só o sei fazer usando panos e linhas europeias.”
Antes de se dedicar exclusivamente à literatura, Couto trabalhou por 14 anos como jornalista, especialmente no período pós-independência de Moçambique, a partir de 1975. Foi nesse contexto revolucionário e esperançoso que ele rodou o país como parte de um grande projeto estatal que mobilizou cineastas, fotógrafos, escritores e repórteres para documentar o nascimento de uma “identidade nacional” moçambicana. Um dos nomes ligados a esse esforço foi o diretor de cinema Ruy Guerra, também moçambicano de origem, que já atuava no Brasil desde os anos 1960 e participou ativamente dessa empreitada artística e política.
O grande bordado de Mia Couto — para usar sua própria metáfora do “tecido africano” — foi o romance “Terra Sonâmbula” (1992), livro que lhe conferiu projeção internacional. Trata-se de uma narrativa profundamente dolorosa, ambientada em um Moçambique devastado por anos de guerra civil. Nesse cenário de desolação e espera, acompanhamos a jornada do menino Muidinga e do velho Tuahir, que cruzam o país em busca dos pais do garoto. Ao longo do caminho, encontram uma mala ao lado de um cadáver. Dentro dela, um diário revela a história de outro menino, Kindzu, cujas palavras passam a tecer paralelamente a trajetória dos viajantes.
Essa justaposição de narrativas — a do presente e a do passado, a do sonho e a da memória — permite a Couto construir uma reflexão sensível e crítica sobre os traumas de uma ex-colônia e sua luta por encontrar uma voz própria. “A guerra é uma cobra que usa os nossos próprios dentes para nos morder”, escreve ele, numa de suas frases mais emblemáticas. A frase resume o tom da obra: lírica e brutal, realista e sonhadora, sempre à procura de uma nova forma de dizer e existir.
Mia Couto borda com fios delicados uma literatura de enraizamento e invenção, onde o português não é herança passiva, mas ferramenta ativa de reconstrução simbólica. Seu trabalho é, acima de tudo, um convite a escutar outras cadências, a abrir os olhos para outras geografias da imaginação e a reconhecer que há mundos inteiros sendo ditos em vozes que antes estavam à margem.