O bordado africano de Mia Couto Foto / Companhia das Letras

O bordado africano de Mia Couto

Existe hoje um mercado muito ativo de livros, autores e leitores no chamado Atlântico Sul. Um vai-e-vem em língua portuguesa, formando um triângulo literário entre europeus, brasileiros e africanos. Essa circulação de ideias, experiências e formas narrativas tem produzido uma constelação de obras que escapam dos antigos centros coloniais e renovam o idioma comum com vozes múltiplas e enraizadas em realidades muito distintas.

Há tempos sabia-se que uma geração inteira das antigas colônias de Portugal na África devorou Jorge Amado, Guimarães Rosa e Graciliano Ramos. Esses escritores brasileiros, com suas vozes híbridas e suas representações complexas da oralidade, da violência e da resistência, encontraram eco em jovens leitores africanos que buscavam, ali, modelos possíveis de escrita e pertencimento. A leitura, nesse caso, foi também um gesto de apropriação e reinvenção. Não por acaso, o resultado dessa devoração criativa foi uma produção literária impressionante, que aportou no Brasil com força e brilho.

Terra Sonâmbula, de Mia Couto (Companhia das Letras, 208 páginas)

Com as assinaturas de José Eduardo Agualusa, Pepetela, Gonçalo M. Tavares, Ondjaki, José Luandino Vieira, José Craveirinha, os livros vindos de Angola, Moçambique e outras regiões lusófonas passaram a ocupar lugar de destaque nas estantes e prêmios do mundo de língua portuguesa. São vozes que dialogam entre si, e também com o Brasil, em um circuito que contesta as hierarquias herdadas do colonialismo e propõe uma nova cartografia literária.

Entre esses nomes, talvez o mais conhecido do público brasileiro seja o de Mia Couto, autor moçambicano que desenvolveu uma obra profundamente original e tocante. Nascido em 1955, estudou em escola europeia para brancos, conforme ditavam as regras do apartheid colonial. Mas sua vivência foi muito mais ampla e permeada por outras influências: nas ruas de Moçambique, conviveu intensamente com negros, indianos e chineses, em um ambiente de diversidade cultural que se tornaria matéria viva de sua escrita.

Essa experiência heterogênea moldou um estilo, que se alimenta da oralidade e incorpora palavras de línguas africanas locais, criando um português mestiço, impregnado de imagens, ritmos e invenções. É uma escrita que desafia a norma e transforma a língua herdada em instrumento de reinvenção. “Sou um escritor africano e de língua portuguesa”, declarou certa vez. “Porque o idioma estabelece o meu território preferencial de mestiçagem, o lugar de reinvenção de mim. Necessito inscrever na língua do meu lado português a marca da minha individualidade africana. Necessito tecer um tecido africano e só o sei fazer usando panos e linhas europeias.”

Antes de se dedicar exclusivamente à literatura, Couto trabalhou por 14 anos como jornalista, especialmente no período pós-independência de Moçambique, a partir de 1975. Foi nesse contexto revolucionário e esperançoso que ele rodou o país como parte de um grande projeto estatal que mobilizou cineastas, fotógrafos, escritores e repórteres para documentar o nascimento de uma “identidade nacional” moçambicana. Um dos nomes ligados a esse esforço foi o diretor de cinema Ruy Guerra, também moçambicano de origem, que já atuava no Brasil desde os anos 1960 e participou ativamente dessa empreitada artística e política.

O grande bordado de Mia Couto — para usar sua própria metáfora do “tecido africano” — foi o romance “Terra Sonâmbula” (1992), livro que lhe conferiu projeção internacional. Trata-se de uma narrativa profundamente dolorosa, ambientada em um Moçambique devastado por anos de guerra civil. Nesse cenário de desolação e espera, acompanhamos a jornada do menino Muidinga e do velho Tuahir, que cruzam o país em busca dos pais do garoto. Ao longo do caminho, encontram uma mala ao lado de um cadáver. Dentro dela, um diário revela a história de outro menino, Kindzu, cujas palavras passam a tecer paralelamente a trajetória dos viajantes.

Essa justaposição de narrativas — a do presente e a do passado, a do sonho e a da memória — permite a Couto construir uma reflexão sensível e crítica sobre os traumas de uma ex-colônia e sua luta por encontrar uma voz própria. “A guerra é uma cobra que usa os nossos próprios dentes para nos morder”, escreve ele, numa de suas frases mais emblemáticas. A frase resume o tom da obra: lírica e brutal, realista e sonhadora, sempre à procura de uma nova forma de dizer e existir.

Mia Couto borda com fios delicados uma literatura de enraizamento e invenção, onde o português não é herança passiva, mas ferramenta ativa de reconstrução simbólica. Seu trabalho é, acima de tudo, um convite a escutar outras cadências, a abrir os olhos para outras geografias da imaginação e a reconhecer que há mundos inteiros sendo ditos em vozes que antes estavam à margem.