“Os Demônios”, de Fiódor Dostoiévski, é um exorcismo, é assistir a uma possessão coletiva. Cada personagem ou frase é um espasmo do mal infiltrado na alma. O título remete diretamente ao “Evangelho de Marcos” (“Meu nome é Legião, porque somos muitos”) e essa legião é composta por ideias encarnadas, fanatismos travestidos de razão, ideologias que tomam homens como corpos disponíveis. Neste romance o inferno é uma metáfora e também um método, espécie de doutrina ou programa. O diabo não precisa aparecer com chifres, ele está em panfletos, manifestos, fórmulas de salvação coletiva. A Rússia de Dostoiévski era o laboratório desse novo tipo de mal: impessoal, organizado, frio, nascido do coração humano.
O século 19 russo é uma febre completa, com delírios ideológicos e espiritualidade em decomposição. “Os Demônios” foi escrito após a publicação de um panfleto real, “Catecismo do Revolucionário”, de Serguei Necháiev, jovem radical que acreditava que o assassinato era uma forma legítima de construção histórica. Necháiev matou um colega de grupo por suspeitar de traição e inspirou diretamente o personagem Piotr Stiepánovitch. Dostoiévski viu nesse caso um sinal: o pensamento político moderno, desligado da metafísica, começa a sacrificar o indivíduo em nome de um futuro abstrato. Nesse amontoado de eslavofilismo, ocidentalismo, fanatismo ateu e revolta órfã de transcendência que nasce o romance. É uma advertência: onde não há Deus, tudo é permitido, e tudo será feito.

Dostoiévski abandona o romance de formação, a delicadeza introspectiva de seus contemporâneos, e adota a fúria da cena. “Os Demônios” é meio que uma tragédia grega escrita por um profeta. As falas se atropelam, os personagens explodem em monólogos febris, a narrativa avança, é um tumulto onde ninguém domina o próprio papel. Cada figura carrega uma ideia extrema, o romance inteiro se estrutura como uma sinfonia dissonante, um coro de almas transtornadas. A forma é teatral, farsesca, não há catarse: o que resta é o ruído. Nesse ruído, a revelação. É o romance como campo de batalha espiritual, palco em chamas. A ação não leva à redenção, leva ao colapso.
Nikolai Stavróguin é o buraco negro em torno do qual tudo gira e afunda. Belo, calmo, inteligente, aristocrático, completamente esvaziado de fé, amor ou culpa. Ele seduz e não deseja; consegue inspirar, ainda que não acredite. Os outros o seguem como se seguissem uma aparição ou corpo sem alma que hipnotiza por sua frieza. Em “Os Demônios”, o niilismo é uma tese e um rosto. Stavróguin é o niilismo encarnado, mas não o niilismo panfletário de Piotr, nem o trágico de Kirillov. É o niilismo da indiferença, da alma que não sente o próprio apodrecimento. Talvez por isso seja o mais perigoso. Sem liderar, todos o seguem. Ele não mata, porém sua presença autoriza o crime. É um diabo moderno: elegante, vazio, silencioso.
Há três personagens que encarnam, com intensidade distinta, a tentativa de responder ao vácuo deixado por Deus. Piotr Stiepánovitch, o conspirador, representa o niilismo estratégico, o maquiavelismo revolucionário. Ele maquina e tudo organiza. Transforma ideias em armas e homens em peões. Kirillov é o místico da descrença, um suicida metafísico que quer provar a liberdade absoluta do homem pelo gesto definitivo: matar-se não por desespero, mas como declaração filosófica. Chatóv, o mais trágico e o mais justo, tenta reencontrar a fé numa Rússia mítica, cristã, messiânica. Ele acredita que o povo russo, enraizado no sofrimento e na compaixão, pode reencontrar Cristo como símbolo e como carne. Três destinos, três demônios, três formas de afundar ou tentar resistir à vertigem do nada.
No universo de “Os Demônios”, as mulheres não escapam à contaminação do tempo. Varvara Petróvna, figura matriarcal e imperiosa, tenta dominar tudo com uma autoridade que parece desespero e um tipo particular de força. Dária Pavlovna é absorvida pela lama moral ao seu redor, enquanto Maria Timoféievna, a esposa mentalmente transtornada de Stavróguin, é ao mesmo tempo símbolo da culpa enterrada e da inocência violada. A casa, que fora espaço da moral doméstica, da tradição, da continuidade humana, torna-se palco de manipulação, humilhação e loucura. O lar é devorado pela política, as mulheres, que outrora sustentavam o eixo ético da narrativa russa, são arrastadas pela mesma tempestade que destrói os homens. O romance é sobre ideias políticas e sobre a implosão da ordem simbólica, e o feminino, ali, sofre.
Há uma dimensão farsesca no livro, que perturba ainda mais do que a tragédia. Dostoiévski sabia que o verdadeiro mal não é grandioso, é ridículo. Os revolucionários tropeçam nas próprias palavras, berram discursos vazios, se expõem em poses caricatas. A reunião conspiratória que deveria ser momento de tensão política transforma-se numa cena de pastelão. Há risos sufocados, que deixam gosto de sangue na boca. O grotesco é estilo e método, uma revelação de que o niilismo, ao se encenar com tanta fúria, se torna cômico. E esse riso é que apavora. O leitor ri e, logo depois, sente vergonha de ter rido. O horror em Dostoiévski é medíocre. Justamente essa mediocridade, essa banalidade do mal, como diria Hannah Arendt, que o torna tão insuportável.
É um romance sobre pessoas más, e sobre pessoas frágeis possuídas por ideias. Os verdadeiros protagonistas da obra são os conceitos que se infiltram como vírus, liberdade absoluta, destruição como purificação, ausência de Deus como oportunidade. Esses demônios não vêm de fora: nascem dentro da razão corrompida, do ressentimento disfarçado de virtude, da ânsia de destruir o que não se entende. Dostoiévski nomeia o mal com clareza. A possessão moderna é ideológica, epidêmica, infecciosa. Cada personagem é uma célula tomada por um delírio. O romance antecipa as pestes do século 20: o totalitarismo de esquerda e direita, o terrorismo político, massacres em nome da humanidade. Dostoiévski escreve vendo o incêndio antes de todos e tenta, em vão, alertar.
Albert Camus, em “O Homem Revoltado”, vê em Dostoiévski o primeiro escritor a compreender que a negação de Deus conduz à negação do homem. Nikolai Berdiaev o lê como profeta da crise espiritual do Ocidente. Eric Voegelin percebe em “Os Demônios” uma cartografia do fanatismo moderno, o mesmo que, décadas depois, encheria campos de extermínio, gulags, praças públicas de fuzilamento. Cioran, o niilista lúcido, enxergava em Stavróguin a expressão perfeita do vácuo elegante que consome as almas refinadas. A literatura de Dostoiévski é antecipação: ele escreve o horror antes que ele se materialize. Com ele, a ficção abandona o conforto do enredo, torna-se instrumento de diagnóstico. Ler “Os Demônios” é compreender o século 20 em embrião e perceber que o século 21 ainda é seu filho bastardo.
Chegar ao fim do romance é sair de um transe. A alma cambaleia, a razão está exausta, mas algo foi purgado. “Os Demônios” não oferece consolo, ele oferta lucidez. Não ensina a salvar o mundo, mostra de onde vem sua destruição. É um livro para atravessar o tempo. Ao lê-lo, o leitor compreende os personagens e a si mesmo, suas ilusões políticas, tentações morais, delírios de pureza. É um romance que previne e desperta. Em tempos de slogans, algoritmos e certezas vazias, Dostoiévski continua sendo um exorcista, e a literatura, seu ritual. Quem lê “Os Demônios” sai mais cético das utopias, mais humilde diante do mal e, acima de tudo, mais humano.