No fundo, o problema é que ele não se contém. Nunca se conteve. Escreve como se estivesse atrasado, como se o teclado pegasse fogo se ele não terminasse logo. Há algo de ansioso no modo como empilha personagens, como abre três janelas narrativas onde uma bastaria. Às vezes, parece que sua literatura tem medo do silêncio — como uma pessoa que fala demais quando sente que pode ser abandonada no meio da frase.
Mas isso é só impressão. Ou quase. Porque quando se lê “O Iluminado” pela terceira vez, a velocidade parece outra. E quando se relê “Misery” no escuro, percebe-se que há, sim, silêncio entre as falas — só que é um silêncio carregado de machado.
Chamá-lo de McDonald’s da literatura não é um erro. Mas também não é exatamente um insulto. O McDonald’s não chegou onde chegou à toa. Ele oferece o que as pessoas querem, com eficiência, com repetição confortável, com sabor calibrado. Stephen King também. Ele oferece histórias. Personagens com quem você se importa em três páginas. Clímaxes que funcionam. Medos que reconhecemos. E finais — bem, nem sempre os finais. Mas isso faz parte da fome.

Ele é popular. Isso irrita. Principalmente os que confundem popularidade com vulgaridade. Mas King não é vulgar. Ele é prolixo, sim. É caótico, redundante, sentimental. Mas isso o aproxima mais da tradição oral do que da literatura de prateleira da Barnes & Noble. Ele é, em certa medida, um contador de histórias de beira de fogueira, só que com contrato de sete dígitos.
E a questão da quantidade, claro. Escreveu mais de 70 livros. Muitos ótimos, alguns esquecíveis, alguns que só ele lembra. Não tem vergonha disso. Não se esconde atrás de mistérios criativos. Fala sobre o ofício, responde carta de fã, discute adaptação. Ele não performa o autor — ele apenas escreve. E escreve. E escreve.
A crítica literária, essa criatura sempre em busca de substância, não sabe muito bem o que fazer com ele. Quando o elogia, elogia com ressalva. Quando o premia, é como se dissesse “ok, você venceu — mas que fique claro que não é porque queríamos”. O problema é que King não precisa do afago da crítica. Ele já tem o que importa: leitores. Milhões. E leitores que sentem. Que lembram. Que têm medo, ou saudade, ou raiva dos personagens dele.
Mas então por que essa sensação de plástico? Por que essa imagem de “fast fiction”? Talvez porque ele raramente economiza. Porque, ao contrário dos autores que escolhem a palavra exata, King escolhe todas que passam pela cabeça. E isso cansa. É como se o livro tivesse páginas demais e controle de menos. Como se houvesse uma arte inata, mas nenhuma edição. Como se ele se bastasse — e isso, para quem valoriza concisão, pode parecer ofensivo.
E ainda assim… há livros. “It”, sim, exagerado, inflado, megalomaníaco. Mas há a infância ali, o trauma, o medo ancestral do esgoto. “Carrie”, curto, explosivo, sangrento, carregado de vergonha e fúria — um romance que sangra. “A Zona Morta”, com sua tristeza resignada, um livro político disfarçado de ficção paranormal. E “Sobre a Escrita”, talvez seu trabalho mais honesto. Um livro que não tenta ensinar, mas que compartilha.
A verdade é que ele sabe morrer. Poucos personagens morrem como os de King. Morrem com medo, morrem com escatologia, morrem com frases que parecem escritas com pressa — mas não são. Porque ele conhece o leitor. E mais: conhece o corpo. Sabe onde dói, sabe como cortar. Pode parecer excessivo, mas é funcional. Pode parecer barato, mas a dor é autêntica.
Ser o McDonald’s da literatura significa alimentar muitos. Significa estar em todo lugar. Significa, sim, repetir receitas. Mas também significa ser reconhecível, confiável. E quando você está com fome, e tudo ao redor parece estranho, há um valor nisso. Stephen King é isso. Um lugar para voltar quando a literatura parece não te querer por perto.
Mas ele também é o cara que escreveu “Rita Hayworth and Shawshank Redemption”. E “O Nevoeiro”. E “O Corpo”, que virou “Conta Comigo”. Filmes, sim, mas as palavras estavam lá primeiro. E estavam certas. E estavam vivas.
King não escreve para ser estudado, escreve para ser sentido. E, por vezes, isso é mais literário do que toda a metaficção combinada. Ele não se esconde atrás de camadas. Está tudo ali, à mostra, como em uma bandeja. Você pode escolher. Pode criticar. Pode amar. Pode ignorar. Mas ele continuará. Porque não está tentando ser gourmet. Está tentando te alcançar.
E consegue. Mesmo quando exagera. Mesmo quando repete. Porque há algo de muito humano em querer contar mais uma história, mesmo que seja parecida com a anterior. Mesmo que a frase ainda não esteja perfeita. Mesmo que alguém vá dizer que isso não é literatura de verdade.
Stephen King escreve porque não sabe não escrever. E talvez a gente leia por isso. Porque há fome. Porque há medo. E porque, no fim das contas, tudo o que a gente quer é alguém que saiba nos contar uma boa história — com susto, com sangue, com alma. E com batata grande.