Existe algo de comovente na maneira como Wes Anderson compõe um quadro. Não apenas pelo rigor estético, pela simetria, pelos cenários construídos à mão — tudo isso já sabíamos. Mas porque, em “Asteroid City”, cada plano parece conter um gesto de contenção, uma tentativa desesperada de ordenar o caos com régua e compasso. É o filme mais metalinguístico, mais construído e, paradoxalmente, mais vulnerável do diretor. E talvez o mais melancólico.
Estamos em um deserto ficcional, uma cidade artificial no meio do nada, construída com o mesmo esmero de um cenário de teatro. Lá, um grupo de cientistas, militares e adolescentes se reúne para um congresso sobre astronomia juvenil — até que um evento “extraterrestre” interrompe a programação. Mas o evento, se é que importa, não é o ponto. O que Anderson faz é encenar a impossibilidade de entender o que está acontecendo — e de sentir plenamente enquanto se tenta entender.
A estrutura do filme é um diorama dentro de um programa de televisão que encena uma peça de teatro sobre um roteiro inacabado. Sim, há camadas. Mas elas não estão ali para impressionar. Estão ali porque o vazio no centro da história precisa ser cercado de alguma forma — precisa ser traduzido, ou pelo menos emoldurado. Como quando colocamos flores diante de algo que nos escapa.
Jason Schwartzman interpreta um ator que interpreta um fotógrafo viúvo chamado Augie Steenbeck. Augie viaja com os filhos e carrega, numa urna, as cinzas da esposa recém-falecida. Ele é incapaz de contar aos filhos que a mãe morreu. Incapaz de sentir, ao menos da forma esperada. E talvez seja esse o cerne do filme: a dificuldade — ou recusa — de lidar com o luto, com o amor, com a vida como ela é. Porque tudo parece encenação, e mesmo a dor precisa seguir marcação de cena, luz, música.
Scarlett Johansson interpreta uma atriz em crise, que também ensaia um papel. Seus diálogos com Augie parecem rascunhos de uma intimidade que nunca chega a se concretizar. Há desejo, mas ele é teórico. Há aproximação, mas ela esbarra em paredes invisíveis. Como se os personagens só soubessem existir quando alguém diz “ação” — e, fora disso, tudo fosse pausa, inércia, bloqueio.
Mas o que realmente sustenta “Asteroid City” é o silêncio. Os momentos em que os personagens não sabem o que fazer. Quando ficam parados olhando para o céu, para o deserto, para dentro. O alienígena que aparece — e que poderia ser o ponto alto de outro diretor — aqui é só mais uma presença incompreensível. Ninguém reage com susto. Porque não se sabe mais como reagir a nada.
E é justamente aí que o filme toca algo essencial. Vivemos tempos em que o absurdo se tornou cotidiano. E Anderson parece dizer: o que resta é encenar. Reencenar. Fazer de conta. Montar um diorama. Conter a angústia com cortinas bem passadas e trilhas perfeitamente colocadas.
A beleza de “Asteroid City” está nesse embate entre forma e falência. Tudo é lindo — mas algo está errado. O filme pulsa como uma homenagem ao não sentir, ou ao sentir que se esvazia antes de se traduzir. E há algo de profundamente humano nisso. Porque quantas vezes a gente também não quis entender o que está acontecendo, só para descobrir que não há nada a entender? Só uma ausência que muda de lugar.
No final — e esse final não é resolução, é suspensão — resta uma frase: “Você não pode acordar se não souber que está dormindo.” É mais do que ironia. É uma epifania melancólica. Porque talvez estejamos todos dormindo. E Wes Anderson, com suas miniaturas meticulosas, suas composições de cores impossíveis, esteja apenas tentando nos acordar sem nos ferir.
“Asteroid City” é, enfim, um filme sobre a dificuldade de existir. E, por isso mesmo, talvez seja o mais honesto de Wes Anderson. Um filme que não se resolve — e que não quer se resolver. Um luto disfarçado de teatro, um trauma vestido de paleta pastel. E, acima de tudo, uma pergunta sem resposta encenada com a delicadeza de quem sabe que, às vezes, o que mais dói é não saber o que está doendo.
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