Nem sempre tem-se necessidade de remédio. Muitas vezes, nossa salvação está no escuro, bem quieta na solidão quase impenetrável de uma sala de cinema, alimentando-se do silêncio que estoura numa tempestade de lágrimas ou no pasmo absoluto dos olhares enquanto sobem os créditos. Comigo era bater e valer: quando, em tardes de calor e secura, cabulava aula e ia me meter na sala imensa do Cine Brasília (sem ar-condicionado à época), sabia que ao cabo daquelas duas horas, pouco mais, pouco menos, teria a resposta matadora para alguns de meus ridículos dilemas juvenis.
Bons filmes têm o condão de transformar o caos do existir em narrativa, dando sentido ao absurdo e até oferecendo os sinais que recusa-nos a própria vida. Terapias ortodoxas exigem tempo, paciência, empenho e podem não surtir efeito. Filmes não acertam o alvo todas as vezes, claro, mas nesse movimento dialético de tentativa e muitos, muitos erros, toma corpo um processo de autoconhecimento e purgação que revela-se um farol em noite de mar proceloso. Uma obra-prima como “As Horas” (2002), de Stephen Daldry, por exemplo, arrasta-nos para o turbilhão de emoções que colhe um trio de mulheres de épocas distintas, as três lutando contra a depressão, o tédio e o peso de goradas expectativas. E na maior parte das cenas elas não precisam falar nada para capturar nosso sentimento. O cinema usa e abusa da imagem para exercer sua força, sem a mediação do intelecto. Planos ousados, trilhas que enchem a tela no momento oportuno, a cadência tão particular da fotografia a costurar tudo fomentam a uma catarse de que nem se sabia precisar.
Ao percebermos que nossas angústias são compartilhadas por outras pessoas — fictícias, mas que poderiam existir perfeitamente, e decerto existem mesmo —, sentimos que existe um lugar só nosso onde somos reis, rainhas, fadas, deuses. Saber que outros também erram, sentem-se inadequados, amam mal, tentam de novo e soçobram arrefece nossa desgraça e tempera nossa fé. O que para uns é apenas entretenimento, para outros é epifania. Junto com mais três produções, o filme de Daldry, baseado no romance vencedor do Pulitzer do americano Michael Cunningham, de 1998, prova que cinema talvez se constitua no meio mais simples, eficiente e poético de transcender. E esse é o passo inaugural para a cura.

Sonhar pode vir a ser uma perigosa armadilha. Quando a vida entra numa espécie de giro eterno, e ciclos se iniciam e têm fim sem que consigamos perceber, é hora de mudanças radicais no que temos feito de nossa jornada aqui embaixo. Walter Mitty, o personagem-título da comédia fantástica de Ben Stiller, chega a um ponto em que não sabe o que pode ser a dura realidade e aquilo que só existe mesmo na sua cabeça delirante, quiçá emulando os dias de glória de que jamais pudera desfrutar. Walter é o arquétipo da boa loucura — porque, claro, a insânia também dispõe de dois lados —, se perdendo e tornando a se encontrar num carrossel de desejos recalcados, seu tormento e sua salvação. Em “A Vida Secreta de Walter Mitty”, Stiller coloca em marcha elementos do humor que decerto fora obrigado a sufocar em diversos de seus inúmeros trabalhos, uns notáveis, outros nem tanto, quase uma centena e meia de tipos como ator, entre filmes, séries e participações especiais, e aqui, a exemplo do que fizera em outras duas dezenas de vezes, o protagonista-diretor tem a chance de pôr a nu sua versão para figuras como este personagem central, particularmente saboroso nas idiossincrasias de que o público vai se apropriando sem pedir-lhe licença.

Muito se fala de “Mrs. Dalloway” (1925), talvez o romance mais famoso de Virginia Woolf (1882-1941), mas “As Horas” estrutura-se mesmo em outro trabalho da escritora londrina que, surpreendentemente, dorme esquecido nos braços mornos do tempo. Em “Um Quarto Só Seu” (1929), Woolf lançou as bases do feminismo moderno, recorrendo à metáfora mais direta para sustentar que mães de família bem-casadas não deveriam resignar-se com suas casas suntuosas, se não tinham um espacinho onde pudessem recolher-se de quando em quando. A partir de “Um Quarto Só Seu”, Stephen Daldry chega a “Mrs. Dalloway”, e daí para seu filme, baseado no romance vencedor do Pulitzer do americano Michael Cunningham, de 1998, cujo título por seu turno brinca com “Os Anos” (1937), o penúltimo trabalho de Woolf e seu último publicado em vida, sobre as transformações de uma família endinheirada em meio século — sete décadas mais tarde, a francesa Annie Ernaux, ganhadora do Nobel de Literatura de 2022, também apropriou-se da antecessora e usou da mesma analogia num romance autobiográfico. Pelo visto, Woolf dá sorte, ainda que sua vida desditada seja o alfa e o ômega de “As Horas”, por onde o roteiro de David Hare passeia ligando três gerações de mulheres a uma infeliz coincidência com a vida de uma genuína esteta do sofrimento.

“O Indomável — Assim É Minha Vida” é um drama delicado e introspectivo que retrata a vida de Donald “Sully” Sullivan, um operário envelhecido e rabugento, interpretado com maestria por Paul Newman. Vivendo numa cidade pequena e marcada pela rotina, Sully carrega mágoas do passado e leva uma existência sem maiores compromissos, evitando vínculos profundos, especialmente com a família. O filme acompanha sua lenta e silenciosa transformação à medida que ele se reconecta com o filho e conhece o neto, revelando facetas de afeto que estavam soterradas pelo cinismo. A narrativa aposta no minimalismo, priorizando os diálogos sutis, os gestos contidos e a riqueza emocional dos pequenos encontros. Paul Newman confere ao protagonista uma dignidade tocante, num papel que equilibra dureza e humanidade. O roteiro evita reviravoltas fáceis, preferindo explorar o cotidiano com sensibilidade e realismo. Trata-se de um filme sobre reconciliação tardia, envelhecimento e segundas chances. Sua beleza está justamente na simplicidade com que aborda temas universais.

O mundo era ainda uma massa amorfa e fumegante em 1946. Tentando se recuperar da barbárie da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a humanidade se agarrava a qualquer fiapo de esperança por dias melhores que se lhe insinuasse. Até que surgiu “A Felicidade não se Compra”. Lançado naquele ano, o filme de Francesco Rosario Capra, (1897-1991), italiano naturalizado americano que aportara nos Estados Unidos em abril de 1903, aos 6 anos, para revolucionar o cinema, se vale de um enredo simples, quiçá pueril, a fim de narrar uma história que se presta a exaltar a importância do homem comum, real. É patente na filmografia de Capra a exploração do tema da gente simples cujo maior talento é se resignar à verdade invencível de que a vida é dura mesmo, mas ainda assim, ou justamente por isso, se devem enfrentar as dificuldades e, com alguma sorte, vencê-las. Já o fizera em “Aconteceu Naquela Noite” (1934), usando o mote da ricaça infeliz que, por alguma razão, cruza o caminho de um jornalista desempregado que a faz mudar seu jeito de viver, e com ainda mais força em “Adorável Vagabundo” (1941), talvez um ensaio para o trabalho de folego que “A Felicidade não se Compra” viria a exigir. Baseado no conto “The Greatest Gift” (“o maior presente” ou “o maior dom”, em tradução literal), de autoria do historiador Philip Van Doren Stern (1900-1984) e publicado pela primeira vez em 1939, “A Felicidade não se Compra” esquadrinha a vida de George Bailey, vivido pelo soberbo James Stewart (1908-1997). Bailey, um pequeno banqueiro falido de Bedford Falls, decide se matar no intuito de resgatar o valor da apólice do seguro de vida e, dessa forma, impedir que a família siga passando momentos de privações materiais enquanto ele se esvai em inquietações do espírito. Tido como o filme mais poético já realizado, a história de George Bailey nos chama a repensar nossa visão de mundo. O dinheiro compra tudo, exceto o que tem valor.