Tudo começa num sussurro, uma lâmina atravessando o silêncio como se cortasse também o tempo. Há sangue, mas é um sangue asseado, de laboratório, de bisturi, e há um riso que não combina com o corpo no chão. Alguém tropeça em seus próprios medos e chama isso de literatura. Outro ri, fotografando a queda, e vende o retrato como crime psicológico. No fundo, há sempre um cheiro de coisa fingida. Paredes limpas demais. Um monstro de aluguel. A literatura, essa, às vezes aceita sublocação.
Raphael Montes surgiu como quem quebra o vidro da vitrine e, em vez de fugir, senta-se dentro da loja iluminada. É esperto. Tem tino. Talvez não talento, não aquele talento antigo, corrosivo, que ruía a unha dos dedos de Fonseca ou gaguejava culpa em um parágrafo de Rubem. Mas tem outra coisa: método. Sabe onde vai, sabe para quem escreve. Isso já é um mérito em tempos de gritaria.
Mas quando exatamente o susto virou entretenimento? Sheldon, com seu serial killer de poltrona e chá de camomila, mostrou que o psicopata pode morar na sala de estar. Raphael levou essa sala ao Airbnb. Ele organiza seus crimes como quem escreve uma sinopse para a Netflix: ritmo, gancho, reviravolta, twist que parece criado por um comitê de roteiristas com MBA em storytelling. Nada é gratuito, e isso também é um problema.
O sangue em Montes é sempre justificável, até o absurdo é racional. Os corpos têm motivo, os algozes têm trauma, as vítimas têm biografia. E o leitor, sempre, tem conforto. Mesmo quando há canibalismo, como em “Jantar Secreto”, há um tom de piada interna, uma ironia de escritório, como se dissessem: relaxa, é só ficção gourmet. É Sheldon? Pior: é um Sheldon sem as rugas.
Mas não se pode dizer que seja ruim. Não do jeito comum. Raphael escreve bem, no sentido técnico. Estrutura, vocabulário limpo, cenas que se encaixam como peças de Lego, mesmo quando fingem improviso. Seu texto é treinado. Fisga. Flui. A questão é: para onde?
Rubem Fonseca escrevia como quem esperneava contra o mundo, mesmo que estivesse sentado. Seus contos fedem a desejo, a carne urbana, a respiração interrompida no meio da página. Nada ali era seguro. Havia risco. Havia algo não domesticado na voz. Em Montes, tudo parece já ensaiado. O susto vem com trilha sonora, como um episódio de “Mindhunter”. E talvez esse seja o maior problema: Raphael Montes escreve como quem confia demais no seu próprio algoritmo.
É fácil gostar de seus livros, talvez fácil demais. Leitores devoram “Suicidas” ou “Dias Perfeitos” com aquela urgência de quem assiste a uma série antes do spoiler. E o autor sabe disso. Constrói capítulos como ganchos, personagens como iscas. Há prazer nisso. Mas há também uma ausência: onde está o indizível? Onde está o ruído? Onde, enfim, está a falha?
É curioso que, em suas histórias, Montes explore obsessões, compulsões, desvios, mas sua própria escrita fuja deles como quem teme a própria sombra. Seu texto é limpo, editado, calculado. Há sempre um ponto final quando o silêncio seria mais inquietante. Não há vísceras fora do lugar. Nem quando há vísceras.
Isso talvez explique sua recepção dividida. Críticos torcem o nariz. Leitores o defendem com entusiasmo quase adolescente. A indústria o adora. E Raphael, ciente, navega por isso tudo com um sorriso discreto. Já escreveu roteiros, adaptou livros, planejou projetos transmídia. Seu nome circula como marca. E nesse sentido, venceu.
Mas o que ele fez da literatura? Onde cabe essa obra, se é que obra é a palavra, entre o brutalismo visceral de Fonseca e o sadismo de sofá de Sheldon? Montes parece ocupar um espaço confortável entre os dois extremos: o do crime de classe média. Sangue, sim, mas com Wi-Fi. Monstros, claro, mas com perfil no LinkedIn.
Há virtude nisso. Raphael Montes democratiza o thriller psicológico brasileiro, amplia seu alcance, atrai jovens leitores, oferece uma porta de entrada ao gênero. Mas, e aqui o espinho, o que se faz com essa porta? Ele entra? Arromba? Ou simplesmente sorri para a câmera?
E nem é que falte ambição. Ao contrário. Falta descontrole. Falta aquilo que torna a arte indigesta, ou pelo menos incômoda. Seus livros são como bonecos em uma vitrine de crime: perfeitos, esteticamente sangrentos, mas sem peso real. Falta sujeira. Falta perda.
Num tempo em que a literatura clama por urgência, Raphael escreve como quem já tem um plano de marketing. Isso o torna eficiente, visível, talvez até necessário. Mas não inesquecível. Seus personagens morrem, matam, escondem corpos, mentem. Mas raramente sangram de verdade. Sangue com contexto, com causa, com resolução. A dor, ali, é coreografada.
Olhando de fora, Montes parece mais próximo de um engenheiro narrativo do que de um escritor inquieto. E tudo bem. O mundo também precisa de engenheiros. Mas, na literatura, essa arte de falhar com estilo, ser eficaz pode ser, paradoxalmente, um tipo de fracasso.
E se tudo isso soar amargo, que seja. Há honestidade em dizer que há algo em Montes que fascina, sim. Uma vontade de contar histórias, uma inteligência estrutural, um domínio da mecânica do medo. Mas há também algo que incomoda: a sensação de que, no fundo, ele nunca corre risco. E sem risco, a literatura vira maquete.
Rubem Fonseca nunca explicava seus monstros. Apenas os deixava respirar. Sheldon os abraça. Raphael os empacota. E vende bem. Talvez até demais.
O tempo dirá se, entre o grotesco literário e o pop serializado, haverá espaço para o cálculo elegante de Raphael Montes. Por enquanto, ele habita um meio-termo confortável. Talvez seja ali mesmo que queira estar. Mas não é ali que a literatura acontece. A literatura, essa coisa indomada, ainda mora mais perto da falha do que do sucesso. Mais no tropeço que no aplauso. E Raphael, por enquanto, não tropeça. Talvez esteja aí o verdadeiro problema.