No coração do estado de Goiás, onde o calor denso do cerrado se mistura à poeira fina das estradas vicinais, três cidades formam uma configuração geográfica e simbólica que, por si só, parece uma fábula geopolítica. Palestina de Goiás, Israelândia e Amorinópolis compõem um triângulo territorial cujo valor transcende a coincidência dos nomes. Em meio a plantações de mandioca, pequenas feiras rurais e silos de grãos, essas localidades ecoam, com sotaque interiorano, temas universais como tensão política, disputa por recursos e negociações silenciosas entre vizinhos.
Palestina de Goiás é uma cidade modesta, com pouco mais de 3.200 habitantes, localizada a oeste do estado. Suas ruas planas e o ritmo pacato contrastam com a força simbólica do nome. Apesar da sonoridade carregada de sentido histórico, a rotina gira em torno da produção agrícola, das festividades religiosas e da economia de subsistência. Ali, a tensão não é armada, mas sutil: expressa nas disputas por verbas de asfalto, pela qualidade da escola municipal ou pelo número de fiéis na festa do padroeiro. A cidade vive em estado de atenção, não por medo de ataques, mas por necessidade de afirmar sua existência diante de um mundo que não a enxerga.
Cerca de 90 quilômetros separam Palestina de Israelândia, pela GO-060. A estrada que as conecta é mais do que uma ligação asfáltica: é uma linha porosa, uma espécie de “faixa rural” em que alianças e desconfianças se alternam, quase sempre ao som de caminhões de leite e tratores. Israelândia, com pouco mais de 2.600 habitantes, recebeu esse nome por causa de Israel de Amorim, antigo garimpeiro. Mas não são poucos os que observam, com ironia cúmplice, o fato de que Israel e Palestina convivem em regiões vizinhas do cerrado — e convivem, ao menos superficialmente, em paz.
A rivalidade entre as duas é menos ideológica e mais culinária, festiva e produtiva. Em vez de disputas por território, há embates sobre qual cidade faz a melhor pamonha, ou quem monta a quadrilha mais elaborada. A economia local gira em torno da agricultura familiar, e a figura do garimpeiro — ainda presente na memória afetiva de Israelândia — dá lugar a produtores de leite, farinha e milho. A cada mês, novas trocas silenciosas são firmadas entre as comunidades: sementes compartilhadas, equipamentos emprestados, ajuda na colheita.
Mas como em toda relação simbiótica, a dependência também gera desconforto. A boa produtividade de Israelândia afeta o escoamento da produção em Palestina. E quando Palestina atrasa a vacinação do rebanho, Israelândia sente no bolso. Pequenos atritos, sem dúvida, mas que traduzem em escala humana os grandes dilemas da diplomacia.
Amorinópolis é o Irã do cerrado — só que com mandioca no lugar de mísseis
Ao sul desse micro-Oriente Médio goiano está Amorinópolis, cidade com pouco mais de 3.000 habitantes, que há alguns anos passou a ser mencionada em relatórios da CNEN (Comissão Nacional de Energia Nuclear). O motivo: reservas subterrâneas de urânio e fosfato, ainda em fase de estudos. Em termos reais, ainda não há exploração ativa. Mas na imaginação local, e nos discursos políticos regionais, a descoberta já transformou Amorinópolis em uma potência latente.

A comparação inevitável é com o Irã. Não porque Amorinópolis ameace ninguém, mas porque detém — assim como Teerã — algo que os vizinhos não têm: poder em estado bruto, enterrado. E poder, mesmo que silencioso, desequilibra.
A cidade ainda vive do agronegócio, da criação de gado e da agricultura de ciclo curto. Mas a possibilidade de exploração mineral já agita prefeitos, sindicalistas, empresas e associações ambientais. Há quem fale em royalties. Outros temem contaminações. E há, também, os que sonham com empregos, asfalto e protagonismo.
Ao contrário do que ocorre nos bastidores da ONU, os diálogos entre Amorinópolis e suas vizinhas se dão em assembleias escolares, reuniões de câmara, rodas de tereré. São conversas sem tradutores, mas com muito subtexto. Palestina observa com certa desconfiança: teme os impactos ambientais no Rio Claro, que banha a região. Israelândia, mais pragmática, enxerga oportunidade de negócios.
Os moradores de Amorinópolis falam baixo. A maioria não sabe ao certo o que é urânio, mas sabem que vale algo. Sabem que atrai gente. Sabem que já estão sendo observados.
As tensões são brandas, mas palpáveis. A CNEN exige estudos. O Ministério Público pede cautela. A população espera. E o solo — tão escavado, tão conhecido — volta a ser mistério.
Geopolítica do cerrado: entre cercas baixas e bolinhos de milho
Não há muros nem tropas entre essas cidades. Mas há cercas. E as cercas, por mais que não impeçam o passo, delimitam. Entre um município e outro, existe o trânsito fácil das pessoas, mas nem sempre das intenções.
No mapa de Goiás, Palestina, Israelândia e Amorinópolis estão dispostas de forma a sugerir um triângulo — não equilátero, mas suficientemente simétrico para chamar atenção. Um arranjo quase didático, como se a geografia quisesse brincar com a política.

Nas feiras, é comum encontrar produtos de uma cidade na outra. A mandioca de Israelândia é frita em Amorinópolis. O leite de Palestina adoça o café dos caminhoneiros que passam pela outra. Mas essa convivência não é isenta de ruído. Pequenas queixas se acumulam. Amorinópolis estaria “se achando” com seu urânio. Palestina teria atrasado o pagamento dos servidores. Israelândia não colabora com as demandas regionais.
Mesmo assim, a máquina gira. Os agricultores sabem que dependem uns dos outros. As cidades pequenas sobrevivem por cooperação, e a política de alianças é feita em silêncio, como se todos soubessem que o equilíbrio é delicado demais para ser gritado.
Durante as festividades de São Sebastião, padroeiro de Israelândia, há sempre uma delegação de Palestina. Em junho, quando é a vez da tradicional festa do milho em Palestina, Israelândia devolve a visita. Amorinópolis, mais arredia, manda representantes menores — mas sempre manda. É como se, mesmo sem grandes acordos, houvesse um pacto tácito entre os três: o de continuar vizinhos sem virar notícia.
Tudo que começa, começa com poeira
À medida que o sol cai e o céu goiano se pinta em tons de fogo, o cerrado entra em estado de repouso. A poeira baixa. O urânio dorme. A mandioca espera. A política silencia. E, por algumas horas, parece não haver tensão.
Mas está tudo lá. Adormecido sob a terra quente: os nomes carregados de história, os recursos que ainda não foram tocados, os projetos que dividem opiniões. Está tudo lá — num triângulo de cidades que talvez nunca apareçam nos jornais, mas que contêm em si as minúcias, os ruídos e os gestos da grande geopolítica.
No fim das contas, o que se aprende em Palestina, Israelândia e Amorinópolis não está nos tratados nem nas cúpulas. Está nas palavras medidas dos prefeitos, nos silêncios dos agricultores, nas escolhas que são feitas em pequenos gestos. Porque mesmo onde não há guerra, há conflito. Mesmo onde não há paz declarada, há convivência.
E tudo isso — por mais complexo que pareça — cabe num punhado de terra.