A obra mais deslumbrante de Spielberg está na Netflix (e quase ninguém viu) Divulgação / UPI

A obra mais deslumbrante de Spielberg está na Netflix (e quase ninguém viu)

Não é raro que os diretores mais técnicos, aqueles afeitos à engrenagem meticulosa das narrativas visuais, evitem o espelho autobiográfico — não por falta de material, mas talvez por saberem demais. Spielberg, diferentemente, esperou. E quando decidiu revisitar os escombros luminosos da infância, fez mais do que contar sua história: arquitetou uma espécie de fábula íntima disfarçada de coming-of-age. Em “Os Fabelmans”, ele não entrega um relicário nostálgico — prefere uma lente focalizada nos dilemas de origem, nos fios trêmulos que conectam vocação e afeto, arte e pertença. O filme, por mais pessoal que seja, não pertence apenas a ele. É uma confissão que dialoga com o espectador que já se sentiu deslocado dentro da própria casa, entre amar demais e não saber como ficar.

O núcleo familiar é formado por forças que se orbitam sem se absorver. Mitzi, mãe e artista contida, pulsa como uma nota suspensa: outrora pianista promissora, abre mão do palco em nome da estabilidade — um gesto que silencia, mas nunca apaga. Já Burt, engenheiro metódico, grava filmes domésticos como quem organiza arquivos, racionalizando a memória. No centro da tensão, Sammy — o alter ego mais transparente de Spielberg — observa, absorve, experimenta. A cena em que assiste hipnotizado ao colapso de um trem no cinema, para depois recriá-lo em miniatura, não é apenas metáfora do nascimento de um cineasta, mas um retrato de alguém tentando domesticar o caos com imagens. O trem, afinal, só é assustador até ser enquadrado.

Ao longo da narrativa, o que poderia ter se reduzido a mais um relato de amadurecimento ganha corpo ao revelar que o verdadeiro conflito nunca foi entre sonho e realidade, mas entre aquilo que se vê e aquilo que se finge não ver. O garoto que filma tudo descobre, no ato de montar as cenas, a capacidade devastadora das imagens: não apenas encantam, mas denunciam. Ao flagrar, sem querer, uma traição familiar enquanto edita filmagens inocentes, ele entende que a câmera nunca é neutra. O olhar que registra também interpreta, seleciona, carrega julgamentos. Spielberg não trata o cinema como fuga — ao contrário, assume-o como enfrentamento. É com ele que se sobrevive à desilusão.

Mesmo nas passagens mais delicadas, há uma ironia fina que escapa do sentimentalismo fácil. Michelle Williams constrói uma Mitzi inquieta, ora sublime, ora à beira do colapso, nunca reduzida a rótulos maternos. Paul Dano encarna um pai distante sem fazer dele vilão. E Gabriel LaBelle, na pele do jovem Sammy, encontra o tom exato entre a doçura e a obstinação, mostrando como a sensibilidade pode coexistir com a firmeza criativa. Há em cada performance uma consciência de que o filme está se encenando a si mesmo — como se os atores soubessem que habitam a memória de alguém que já editou essa história mil vezes por dentro.

O passado, neste caso, não retorna como flashback, mas como uma versão recriada com precisão quase obsessiva — e por isso mesmo emocionalmente crua. Spielberg recria não para exaltar, mas para interrogar: que preço se paga por transformar tudo em narrativa? O menino que manipula luz e sombra descobre cedo que o controle sobre o enquadramento não se estende à vida real. E mesmo assim, insiste. Não por vaidade, mas porque entre todas as linguagens possíveis, o cinema é a única capaz de traduzir o indizível. A arte aqui não é escapatória: é ferramenta de compreensão.

É preciso reconhecer a astúcia por trás da aparência serena. Spielberg nunca foi apenas um contador de histórias — sempre foi um estrategista da emoção. Ao longo das décadas, domesticou monstros, reinventou aventuras, dramatizou horrores históricos, tudo com o mesmo faro: saber o que o público quer sentir antes mesmo de ele perceber. Mas aqui, mais do que atender a essa expectativa, ele a subverte. A estrutura do filme é antiespetacular, quase contemplativa. A magia vem da fricção entre o trivial e o extraordinário, entre a infância ordinária e o dom incomum de enxergar além.

Ao transformar sua gênese criativa em filme, Spielberg não busca indulgência nem consagração tardia. Ele acerta ao revelar que a gênese de um artista não está apenas nas paixões evidentes, mas nas fraturas discretas, nos gestos calados, nos momentos em que se escolhe filmar em vez de chorar. “Os Fabelmans” é menos um acerto de contas e mais um estudo sobre como o olhar se forma. E é nesse olhar — cúmplice, dolorido, radicalmente humano — que o cinema volta a ter sentido.

Filme: Os Fabelmans
Diretor: Steven Spielberg
Ano: 2022
Gênero: Comédia/Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★