A vida era doce, mas não era mole. Destituído de vírgulas rapaduras e outras precauções gramaticais um gato cinza passou sob uma escada amarela na qual um homem preto de uniforme roxo fazia reparos na calha de uma casinha rosa cujo proprietário era um homem branco de olhos azuis e de ar superior. Sentindo-se mais por baixo do que diferencial de sapo um cão caramelo de olhar tristonho permanecia deitado na calçada à espera de que o homem preto de uniforme roxo descesse logo da escada amarela para alimentá-lo com um suculento naco de carne vermelha de preferência um filé. À parte isso ainda que não fosse pessoa tinha em si todos os sonhos do mundo. Rapidamente o homem branco de olhos azuis que era dono da casinha rosa tamborilou com a unha comprida e feiosa do fura-bolo contra o mostrador do relógio de ouro que tinha recebido como herança fazendo crer que o serviço prestado pelo homem preto de uniforme roxo estava demorando mais do que o tolerável. Ao mirar a mímica raivosa do herdeiro de sangue azul o homem preto de uniforme roxo acabou perdendo o equilíbrio e despencou do alto da escada amarela sobre a grama verdinha do canteiro multicolorido num acidente que deixou dolorido o seu cóccix. Despertado pelo inusitado óbice o vira-latas caramelo levantou-se serelepe e caminhou diligentemente sobre as quatro patas até o homem preto de uniforme roxo que rolava e que gemia no jardim. O animal lambeu uma de suas mãos não sendo possível precisar se fazia aquilo para demonstrar fome afeto interesse ou compaixão. O homem branco de olhos azuis e relógio de ouro impacientou-se e vociferou que não pagaria pelo serviço contratado se o homem preto de uniforme roxo não subisse imediatamente na escada amarela para finalizar os reparos na esburacada calha da casinha rosa. Desarrazoado imprudente e interesseiro o gato cinza esfregou-se na canela do homem branco de olhos azuis e relógio de ouro que acabou metendo nele um coice de mocassim laranja que arremessou o bichano feito um trapo dentro do canteiro de tulipas lilases que coraram de vergonha. Até o arco-íris perdeu a cor no céu de brigadeiro. Melhor do que ter um imóvel predial registrado no seu nome tinha o gato cinza sete vidas com as quais escapuliu ladeira abaixo miando nunca mais se meter com gente grande. O dogue caramelo que nunca tinha mordido um ser humano e que preferia mil vezes abocanhar um belo bife de carne vermelha in natura do que a panturrilha de um indivíduo boçal e racista mordeu o homem branco de olhos azuis e relógio de ouro. Ora ora ora… Uma hora a justiça chega. O sangue varicoso desceu bonito em eflúvios rubro-escarlates que ensoparam instantaneamente o mocassim marrom recém pisado num monte de merda. Cada um herda o que pode. A despeito da dor lancinante que lhe acometia os quartos o homem preto de uniforme roxo gargalhou da cena pastelão. Justiça terrena. Achava merecida a mordida. No entanto por questão de honra e de hombridade subiu pelos degraus da escada amarela de volta ao trabalho imbuído no compromisso de fechar os buracos que se abriram sob o efeito das chuvas torrenciais na calha da casinha rosa durante a última temporada. De volta à calçada fria exausto de tantos adjetivos dentro de uma só história o doguinho caramelo enrodilhou num sono renitente e sonhou não com os preás gordos e enormes de que falava Graciliano Ramos, em “Vidas Secas” mas com a longa estiagem de fraternidade e com o sabor remoso de gente ruim impregnado na sua língua.

Arco-íris em branco e preto

Eberth Vêncio
Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a “Revista Bula” há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente “Bipolar”, uma antologia de contos e crônicas.