Leo Lins tem razão — e quem o diz não sou eu. Segundo o Artigo 220 da Constituição Federal, que vigora desde 5 de outubro de 1988 (até agora, ao menos), é assegurada a qualquer indivíduo, humorista ou não, a liberdade de expressão e informação, sem restrições. A partir de 23 de abril de 2014, contudo, a própria Carta Magna parece estar sendo alvo de um certo desprestígio no que tange ao assunto. A Lei nº 12.965/2014, o famoso Marco Civil da Internet (MCI), reza, em seu artigo 19, que “as redes sociais só poderão ser responsabilizadas por conteúdo postado se deixarem de cumprir decisão do juiz para remoção”. Lins foi condenado por “incentivar a propagação de violência verbal” e “fomentar a intolerância” em “Perturbador”, seu espetáculo de comédia stand-up, de 2022, ao encenar piadas que reproduzem o preconceito contra negros, obesos, idosos, pessoas com HIV, indígenas, homossexuais, judeus, nordestinos, evangélicos e pessoas com deficiência (ufa!).
Lins é o novo Hitler, ao menos pelo que se depreende da sentença da juíza Barbara de Lima Iseppi, da 3ª Vara Criminal Federal de São Paulo, que o condenou a oito anos de prisão em regime fechado, além do pagamento de multa equivalente a 1.170 salários mínimos e indenização de R$ 303,6 mil por danos morais coletivos. Iseppi alegou ter tomado por base, em sua decisão, as Leis nº 7.716/89, a Lei Antirracismo, que pune quem discrimina por critérios de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, e a nº 13.146/2015, contra o vitupério a pessoas com deficiência, crimes agravados por terem sido cometidos em “atividade cultural destinada ao público”. E o que o Marco Civil tem com o peixe? Para declarar Lins incurso em pena, a magistrada voltou a um vídeo, publicado no YouTube em 2023, em que o comediante faz sua gracinha, assistida por três milhões de usuários. Acontece que a plataforma, por força de decisão judicial, já havia apagado o registro. Li que Iseppi teria sido pela condenação mesmo se o show não tivesse alcançado tamanha repercussão, se uma única pessoa que pagara o ingresso manifestasse seu repúdio. Xi…
A Lei Antirracismo de 1989 mencionada por Iseppi é, na verdade, a Lei Antipiada, cuja sanção, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, remonta a 11 de janeiro de 2023, sob o número 14.532. Uma lei que recebe o justo epíteto de Antipiada é, em si, a própria piada. Por meio dela, reforçaram-se os dispositivos já elencados três décadas antes e equiparou-se o delito de injúria racial ao de racismo propriamente dito, o que redunda em penalidades mais severas que os crimes de furto e roubo, em certos casos. O absurdo é de tal ordem que agem sobre Lins não a Lei Antirracismo ou a Lei Antipiada, mas a Lei de Murphy ou, pior, uma vertente da Lei de Magnitsky: a pena de morte financeira. Afinal, quem dispõe de mais de dois milhões de reais sobrando para liquidar a fatura de 1.170 salários mínimos e compensação moral de R$ 303,6 mil?
O “racismo recreativo” de Lins, no entendimento de Iseppi, pode custar-lhe muito mais que a liberdade, a carreira e o patrimônio — e não só a ele. Arbitrariedades como essa, que visam a blindar a sociedade de suas próprias escolhas, adequadas ou não, ecoam a vocação e o ardor tácito do Judiciário brasileiro de tutelar-nos. A constatação de que operam no território nacional quase dezenove mil juízes é escandalosa pela própria natureza. Frequentemente, há de nascer daí uma excrescência teratológica como a que autorizou Iseppi a retroagir em desfavor do réu, sustentando ainda que foram observados todos os ritos do processo, uma vez que Lins jamais contestara o conteúdo do vídeo. A ser assim, quem seria o imprudente a subir ao palco para manifestar o que percebe da realidade de seu tempo? O que virá a seguir? O fim do espetáculo? O que será de Shakespeare? Molière? Ibsen? Monteiro Lobato já dançou; talvez Machado também dance. A doutora precisa ler Voltaire.
Claro que o caso chegará ao STF — na prática, uma corte de revisão legislativa — e, então, Lins e seus advogados hão de carecer de uma medida extra de sorte para vencer Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes, os Torquemadas do Brasil contemporâneo. Pelo meu bem, espero que o xadrez não pegue Leo Lins.