Funk não é o vilão. Mas cantar que vai bater numa mulher pode ser arte?

Funk não é o vilão. Mas cantar que vai bater numa mulher pode ser arte?

O Brasil não é para principiantes, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador não são para principiantes. Nossa terra dá as frutas mais gostosas — a cem mil réis a dúzia, ou mais caras — e as nédias jabuticabas jurídicas com que capas pretas gordos como preás de sonho se lambuzam do Oiapoque ao Chuí. Nesse suco de desalento, melancolia, aquela inglória luta pela sobrevivência, borbulha, lá no fundo do tacho, força, alegria de viver e obstinação, afinal, a gente vive é de teimoso. O subúrbio e os morros cariocas prestaram-se a catalisadores de um fenômeno sociocultural que atingiria todo o Brasil ao longo do século 20. O samba nasceu pelas mãos duras de Ernesto Joaquim Maria dos Santos (1889-1974), o Donga, e João Machado Guedes (1887-1974), o João da Baiana, assíduos frequentadores do terreiro de Hilária Batista de Almeida (1854-1924), também conhecida como Tia Ciata, na rua Visconde de Itaúna, 117, na Praça Onze, região central do Rio, e não tardou a se espalhar por todo o território nacional, cantando a realidade austera do morador da periferia, não raro de maneira até romanticamente ingênua. Tido por muitos como alienante, banal, vulgar, música barata sem nenhum valor, o centenário samba, para horror das madames, resistiu. E gerou numerosa prole.

Oito décadas após seu precursor, o funk tornou-se um dos gêneros musicais mais populares do Brasil hoje. Tal como o samba, o funk saiu dos tugúrios para as rádios, programas de televisão, eventos milionários, premiações da indústria, e ao passo que ganhou os olhares e os salões, foi vendo-se enredado em críticas, justas ou nem tanto. Há, sim, muito de preconceito de classe e racismo na voz de quem diz não gostar de funk, porém querer negar sua essência de manifestação cultural legítima é um disparate. Em cada batida, em cada letra, verso e coreografia pulsam histórias de insubmissão, desejo de uma mudança estrutural, urgência por pertencer. Jovens negros, pobres e à margem da economia de mercado encontram uma brecha para se inserir, e é nesse contexto que o funk mostra-se revolucionário. Com ironia, sarcasmo, cinismo, truculência, funkeiros cantavam a cruel opressão do dito sistema, a rotina em complexos penitenciários, desagregação familiar, a indignidade do desemprego, fome, miséria; todavia, há alguns anos, o funk parece querer deixar claro que os tempos de vacas magras ficaram para trás. Agora, funkeiros pilotam naves de playboy, contam muitas plaques de cem, enfeitam-se com pesados cordões de ouro maciço e seduzem as burguesinhas.  

O funk muito apropriadamente chamado de ostentação continua a configurar um enorme desserviço à causa. Nessa vertente do gênero passaram a caber também apologia ao crime, banalização da violência contra a mulher, incentivo ao consumo de entorpecentes e uma insana chacota à educação formal como se todos pudessem virar barões da favela do dia para a noite. As recentes prisões de performers a exemplo de Mauro Davi dos Santos Nepomuceno e Marlon Brandon Coelho Couto da Silva, Oruam e MC Poze do Rodo para os mais chegados, jogam água do moinho da discussão acerca da liberdade artística que, como qualquer direito, é relativo. Portanto, há que se separar o joio do trigo. O funk, assim como outros gêneros, é plural. Há dessas letras que retratam uma admirável consciência de classe, sensíveis, de genial mordacidade em sua denúncia das perenes injustiças do capitalismo, do despreparo da polícia, da batalha diária por uma vida digna. A arte tem o direito e mesmo o dever de ser politicamente incorreta e até provocar escândalo. Mas dizer que um “tapinha não dói” ou que “no CV só tem bandido brabo” não tem nada de arte. É só delinquência mesmo.

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.