A campainha tocou. José Márcio calçou as franciscanas e foi ver quem era, logo de manhã tão cedo.
— Meu Deus do céu! O que diabos é isso? — gritou. Maria Helena, acode aqui, pelo amor de Deus!
Maria Helena acudiu.
— Olha só, Maria Helena. Um bebê.
— Uau! Um bebê.
— Alguém deixou o coitadinho aqui na porta, tocou a campainha e sumiu.
— Que gracinha. Pega a criança, José Márcio. Ela deve estar morrendo de frio aí na soleira.
— Como assim “Pega a criança, José Márcio”? Alguém o deixou aqui, sabe-se lá com qual intenção. Quem vai saber? Melhor chamar a polícia e não tocar nele.
— Que exagero, José Márcio. Não vamos deixar a criança deitada no chão gelado sem tomar uma atitude. Não veio um bilhete?
— Não procurei por bilhete, Maria Helena. Estou muito nervoso. Procure você mesmo. Olha aí. Eu não consigo. Pelas chagas de Cristo!
— Calma, José Márcio. Se acalme. É apenas um bebezinho. Não fizemos nada de errado.
— Eu estou vendo que é um bebezinho, Maria Helena. Mas, quem são os pais? Quem foram os desnaturados que abandonaram essa criança tão novinha na porta da nossa casa. Ô, minha mãe!
Maria Helena agachou, catou o bebê e o afagou nos braços.
— É uma linda criança. Que fofinha.
— Pare com isso, Maria Helena. Feche a porta. Alguém pode nos ver.
— Deixe que vejam. Não devo nada a ninguém.
José Márcio puxou a esposa para dentro e trancou a porta. Maria Helena sentou-se no sofá e abriu o pacotinho para pesquisar o sexo da criança.
— É um menininho.
— Sangue do Cordeiro! Eu mereço. Senhor, o que foi que eu fiz de errado? Por que essa provação nessa altura do campeonato?
— Encontrei um bilhetinho. “Caros José Márcio e Maria Helena, eu conheço vocês, mas vocês não me conhecem. Tenho 20 anos, sou solteira, sou sozinha e estou desempregada. Infelizmente, não consigo cuidar do meu filho. Comigo ele não vai ter um futuro. Sei que vocês são pessoas boas, caridosas, abonadas e mais indicadas do que eu para criá-lo. Ele ainda não tem nome. Fiquem com Deus.”.
— Puta merda!
— É um bilhete bem redigido. Parece que foi escrito por gente instruída. Estranho isso, não?
— Estranho é pouco. Maria Helena, escuta só: Maria Helena, a gente não vai ficar com essa criança, a gente tem que ligar pra polícia agora mesmo, antes que alguém deduza que o roubamos. Isso é coisa muito séria, Maria Helena. Virgem Santíssima, me acuda!
— José Márcio, você está sendo infantil. Pra que tanto desespero? Tenha calma, meu amor. Senta um pouco. Respira fundo. Nós vamos resolver isso?
— Nós?
— Eu vou resolver isso, José Márcio. Confie.
— Amém, Maria Helena. Amém. Ele está respirando, Maria Helena?
— É claro que ele está respirando, José Márcio.
— Sei lá. Tem tanta gente maluca nesse mundo. Vai que colocaram um bebezinho morto na porta de casa só por maldade, só pra fugir da responsabilidade.
— Guilherme… Você tem cara de Guilherme, sabia, meu pequeno? — ela disse, passando suavemente a mão sobre a cabeça da criança que dormia profundamente.
— Pare com isso, Maria Helena. Que história é essa de Guilherme? Tenha a santa paciência.
— Ele é lindo, José Márcio. A gente bem que podia ficar com ele, sim.
— Ai, Jesus. Ai, Maria. Ai, Santíssima Trindade. Você tá querendo é me matar do coração, Maria Helena. Não faz isso comigo. Não brinca com coisa séria. Isso vai dar beó. Nós dois já estamos velhos, já criamos os próprios filhos, já estamos do meio-dia pra tarde e nos acréscimos do segundo-tempo.
— Só se for você. Tenho 68. Não me considero velha e, muito menos, pé na cova.
— Que seja. Você não se julga uma mulher velha? Tudo bem. E eu? E eu, Maria Helena. Olhe só pra mim. Tenho 79. Sou idoso pra caramba, com cara de idoso e com cabeça de idoso. Eu sou um homem velho, muito velho, velho pra cacete, Maria Helena. Sou o homem mais velho da nossa rua, pode acreditar. Não me invente essa história de criar filho dos outros. Não tem cabimento. Já temos os nossos netinhos. Ai, meu deus do céu, dai-me forças. Essa mulher ensandeceu.
— As crianças moram nos Estados Unidos. A gente mal os vê. Ligação por vídeo não é a mesma coisa que tê-los aqui por perto. Sinto falta do cheiro, das conversas, das peraltices, das arrelias. Criança é dádiva de Deus, José Márcio. Fomos escolhidos.
— Eu morro. Hoje eu sei que eu morro. Só Jesus na causa. Minha esposa está esclerosada. Batuíra. Vou mandar te internar no Batuíra, Maria Helena. Você vai ver. Mas, antes, vamos devolver esse recém-nascido. Cadê o meu telefone. Vou ligar pra polícia e vai ser agora.
— José Márcio, presta atenção no que eu estou dizendo. A gente dá conta de criar esse menino, meu bem. O dinheiro da aposentadoria dá e sobra para as nossas despesas. Acho que isso é um chamado de Deus, José Márcio. Quem deixou essa criança na nossa porta fez isso com a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo. É um chamado, tenho certeza.
— Alzheimer. Só se for um chamado do Alzheimer que já destrambelhou o seu juízo, Maria Helena. Vou mandar te internar. De hoje não passa, eu juro. Cadê o meu telefone, Maria Helena.
— No seu bolso, José Márcio. Estou vendo daqui.
— Ai, mãezinha, como estou nervoso. Maria Helena quer me matar, mamãe. Só pode. Eu não mereço isso, Maria Helena. Me poupe. Me poupe ou caio estrebuchado no chão. E você vai ficar com remorso.
— Faça isso por mim, José Márcio. Você não me ama? É isso? Você não ama mais a sua esposa, a ponto de atender um pedido tão significativo?
— Eu te amo, Maria Helena. Eu te amo pra cacete, mais do que o Galo, que é o time do meu coração. Se fosse de outra forma, não estaríamos casados há cinquenta anos, Maria Helena.
— Quarenta e seis.
— Que seja, Maria Helena. Quarenta e seis. Eu te amo, Maria Helena. Quem eu não amo é essa criança desconhecida. E se o menino tiver nascido doente, Maria Helena? Já pensou nisso? Tipo doença grave, incurável, AIDS, por exemplo, sei lá, Maria Helena. Não conhecemos nada sobre ele. Pode ter sido roubado. Quem garante que não foi sequestrado e deixaram o garoto na nossa porta, só para nos prejudicar. Isso é muito grave, Maria Helena, você não está entendendo, eu sou da área do Direito.
— Quer pegar ele no colo um pouquinho, José Márcio? — a mulher se levantou do sofá.
— Ô, meu pai, tenha misericórdia desse pobre diabo. Pare com isso, Maria Helena. Eu compro um cachorro pra você. Odeio animais dentro de casa, mas faço esse sacrifício. Sei que você adora um doguinho. Pode escolher a raça, qualquer raça, não importa o preço. Eu pago, Maria Helena. Eu pago.
— Segura o Guilherme só um instantinho, meu bem.
— Divino Espírito Santo, socorrei-me!
— Segura, Zé.
— Maria Helena, não faz isso comigo. Eu vou sair por aquela porta e, quando eu voltar, não quero ver essa criança dentro de casa. Você está me entendendo, Maria Helena?
— Gugu-dadá… — ao mesmo tempo em que balbuciava com o bebê, Maria Helena foi se aproximando do marido que parecia congelado.
— Eu não vou, eu não quero segurar esse bebê, Maria Helena. Chega pra trás, pelo amor de Deus, Maria Helena.
Maria Helena esticou os braços e deixou o bebê cair.
Pimba! Da forma como caiu, ele ficou.
— Puta que pariu, Maria Helena! O Guilherme! O que foi que você fez com o Guilherme?
Maria Helena sentou-se no assoalho, suspendeu o bebê reborn por uma das pernas e quase se urinou de tanto rir. Quem tocou a campainha? Ele não vai entrar nessa história.