Além das listas: a literatura na era digital do novo Brasil

Além das listas: a literatura na era digital do novo Brasil

A recente publicação da lista dos 25 melhores livros brasileiros do século 21 pelo jornal “Folha de S. Paulo” provocou um burburinho típico do nosso tempo. As indignações, os comentários precipitados, os rankings alternativos no X e o já tradicional “ninguém leu, mas todo mundo opinou”. Não era só uma lista colocada no debate público, mas também um diagnóstico, ainda que involuntário, de onde estamos culturalmente. A lista mostrou o que se escreve, como, quem escreve, lê e se sente autorizado a julgar.

Mas é fato que a lista saiu fora de contexto, bem ao modo do ambiente digital. As redes sociais são elementos centrais para a construção de contextos, autorias e gosto de leitores e leitoras. A isso, se alia o fenômeno dos clubes de leituras que ocorrem presencialmente ou por lives do Zoom, Meets e outros serviços. As 25 obras eleitas se confundem também com a listagem dos livros de ficção mais vendidos das últimas três décadas no Brasil — potencializados pelos meios digitais e não pela imprensa tradicional.

O que a lista deixou claro são os limites de meios tradicionais, como a resenha de caderno literário ou o seminário entre especialistas. Escritores viraram micro-celebridades no Instagram. As editoras dominam o YouTube com lives, reels, playlists, influenciadores. E o antigo lugar da crítica legitimada pela imprensa ou pela universidade é substituído pelos algoritmos e booktubers. Caso exemplar é a leitora americana do TikTok que descobriu “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, e virou hype nacional, sendo até convidada para eventos no Brasil.

Mas não é só a crítica, a leitura e a escrita que mudaram. O país se transformou. Se a lista da Folha identifica algumas das mutações, ela escorrega ao tratá-las como fenômenos isolados, como se surgissem espontaneamente, sem história ou tensão. A literatura brasileira do século 21, como toda forma de arte viva, é um reflexo torto, ambíguo e revelador de uma sociedade em mudança profunda. Estamos diante de uma nova nação brasileira. E essa nova nação escreve e lê de forma diferente.

Explosão da literatura negra e feminina

Uma das mudanças mais visíveis (e inquietantes para alguns) está na autoria. O que antes era um campo quase exclusivo de homens brancos de classe média, hoje é atravessado por vozes negras, periféricas, femininas e transgressoras. A presença na lista de nomes como Itamar Vieira Junior, Jeferson Tenório, Ana Maria Gonçalves, Conceição Evaristo e José Falero não é acidental. Trata-se de uma mudança na própria sociedade brasileira e na universidade, atravessada por cotas (raciais, sociais) e novos sujeitos.

Ao contrário da leitura torta que tenta enquadrar essa nova literatura como “militante” ou “woke”, há sim um trato formal diferente. Vemos um novo pacto narrativo, com outras formas de organização do tempo, da voz e da memória coletiva. Como notou Roberto Schwarz nos anos 1980, ao notar a passagem dos pobres da posição de consumidores para a de produtores de cultura, estamos diante de um novo regime de representação política na sociedade brasileira.

Na poesia, por exemplo, a transformação é muito significativa. Autoras como Adelaide Ivánova, Ana Martins Marques e Angélica Freitas representam a sobrevivência de uma forma, sempre posta em risco pela comunicação contemporânea, e a reinvenção por caminhos mais livres e experimentais. Podemos ler um poema épico escrito, por exemplo, por uma pernambucana que mistura registros de várias partes do mundo. É evidente que esse movimento jamais ficaria sem uma reação contundente.

Avanço do conservadorismo cultural

Talvez o dado mais desconcertante do nosso tempo seja a força da cultura conservadora, assumidamente reacionária. Não é um fenômeno de opinião e que respeita as diferenças. Ao contrário. A reação veio para esmagar os inimigos (sobretudo as minorias sociais). O conservadorismo já ocupa um lugar no mercado editorial, no discurso estético, e defende uma nostalgia política e cultural. Livros atacam a universidade, resgatam fantasmas do anticomunismo e pintam a cultura como território contaminado.

O reacionarismo encontrou solo fértil na lógica das redes sociais. O alvo principal é a universidade, acusada de ser uma Sodoma e Gomorra progressista. As raízes desse pensamento estão nos Estados Unidos, onde o presidente tentou decretar a expulsão de estudantes estrangeiros. Talvez a universidade tenha virado um alvo porque valorizou autores negros, quilombolas e indígenas que hoje renovam o campo literário. E estes são acusados de ressentimento e de tentar a destruição da chamada “cultura ocidental”.

Resposta ensaística e pensamento das margens

Se há um ataque conservador, também há um contra-ataque. Ele vem na forma do ensaio rigoroso, bem escrito e contrário ao consenso dos conservadores. Autores como Rodrigo Nunes, Letícia Cesarino, Gabriel Feltrán, Thiago Ferro e Felipe Catalani têm construído uma nova ensaística que pensa o Brasil a partir da ruína, do colapso e das mudanças demográficas e sociais. Uma geração que prima pela escrita de grande qualidade, com estilo próprio e um rigor do pensamento.

Ao lado deles, cresce também o interesse por cosmologias indígenas, pensamento quilombola e filosofia ameríndia. Ailton Krenak, Davi Kopenawa e Nêgo Bispo são os nomes que antes circulavam pela antropologia, mas que agora estão no centro do debate público mais amplo. Em tempos de crise múltipla — política, ambiental, simbólica, como ressalta Vladimir Safatle –, essas vozes oferecem uma denúncia do estado de coisas e uma alternativa para além das contradições do mercado.

Distopia como forma

A pandemia, a escalada autoritária, o conservadorismo, a emergência climática, tudo isso explodiu nas narrativas ficcionais dos últimos anos, muitas delas abraçando a distopia como forma de reencontrar a realidade do país e do planeta. Ana Paula Maia, Natália Borges Polesso e Daniel Galera romperam com o realismo urbano dominante desde Rubem Fonseca e propuseram mundos colapsados, esvaziados e violentos. O fato é que, apesar de irreais, vemos mundos estranhamente reconhecíveis.

É um realismo às avessas, que recorre ao irrealismo para dar conta do real. Uma forma de pensar o presente por meio de futuros falidos. Não se trata de modismo, mas de uma resposta narrativa à sensação generalizada de fim do mundo. Essa literatura tem uma contrapartida no cinema brasileiro de Kleber Mendonça Filho, Karim Ainouz e Gabriel Mascaro. Eles exploram os movimentos da nova nação brasileira, com uma intenção forte de diálogo com os públicos.

Artes em trânsito

A literatura já não é mais um campo fechado ou uma musa sob assédio. Nuno Ramos talvez seja o caso mais emblemático da transgressão de fronteiras. Ele escreve, desenha, pinta, compõe canções, elabora ensaios. Não se prende aos limites formais das artes que se legitimam pela reprodução infinita entre seus pares. E com ele, vêm outros: Fernanda Torres, que sai da dramaturgia para a ficção literária, e Chico Buarque, que traz a musicalidade da canção para o romance.

São artistas que embaralham os campos. Eles colocam a literatura em contato com o teatro, a performance, a música, a instalação. E desafiam o leitor a abandonar a velha ideia de que literatura se faz apenas com palavras. As peças-livros do teatro de Grace Passô e da Companhia do Latão podem ser incluídas na galeria de artistas múltiplos. Mas, a cada prêmio recebido por Chico Buarque, as redes sociais se excitam com uma tempestade de xingamentos e calúnias inimagináveis.

Futuro em disputa

O que virá? A inteligência artificial, os algoritmos de recomendação, os livros escritos por máquinas, os leitores que sublinham com o dedo no Kindle. A cultura da nova nação brasileira já é, também, uma cultura digital e filtrada por plataformas, quantificada por cliques e guiada por tendências. O ambiente digitalizado é inescapável. De nada adiantam os lamentos de uma perda da nossa capacidade de leitura ao longo dos tempos – como se o ato de ler fosse superior ao ver e ouvir.

Mas a literatura ainda resiste em termos de legitimidade e símbolo de distinção social, como se vê na repercussão da lista da Folha. Ela sobrevive no objeto físico, no livro que se marca à caneta, no culto à leitura fora das telas. E talvez por isso mesmo se sinta tão ameaçada. A nova literatura brasileira ainda está sendo escrita. E como toda escrita viva, ela é incompleta, tensa e contraditória. Mas já diz muito sobre o país que estamos nos tornando ou tentando impedir que se torne.

A circulação literária mudou. As resenhas jornalísticas perderam espaço na definição de gostos e de compras. Os jornais impressos e digitais encolheram seus suplementos. Os blogs pioneiros viraram Instagram. Os debates migraram para as lives do YouTube e as newsletters do Substack. E os autores, agora, precisam saber postar suas imagens. O que antes era intermediado por um campo crítico agora é pautado pela autoimagem, com fotos, vídeos em loop e hashtags. É o leitor-autor-curador em tempo real.

As editoras, por sua vez, tornaram-se produtoras de conteúdo, com direito a figurino, trilha sonora e calendário sincronizado com o algoritmo. Nesse ambiente, o lugar da literatura na esfera pública está sendo reformulado. O que antes era uma conversa entre pares é hoje uma performance para todos e todas — de quem escreve e de quem lê. Não se trata de um saber a ser transmitido (ou fixado) por alguém a outra pessoa. O mundo contemporâneo é de fluxos, conexões e interações.