Em “História da Loucura” (1961), Michel Foucault (1926-1984) argumenta que só foi possível estabelecer a diferença entre razão e insânia por meio de uma análise bastante detalhada do comportamento humano. Ao longo dos séculos, o entendimento acerca da loucura mudou da água para o vinho, a depender das convenções culturais e políticas da época observada. Em determinados contextos, o louco era encarado como um indivíduo cujas conexões espirituais tinham o condão de subir mais alto e alcançar o céu antes que as tentativas dos outros desse resultado. Não muito tempo depois, cessou tudo quanto a velha musa cantava e essas pessoas tornaram-se um perigo à ordem pública. O que permanece é o incômodo que o distúrbio mental causa na sociedade dita sã, passando por cima de normas não raro tolas e expondo os limites da própria lucidez.
Oito décadas anos antes de Foucault, Machado de Assis (1839-1908) soube enxergar com fina argúcia os riscos da intolerância no que toca ao dédalo de teorias acerca da mente do homem. “O Alienista”, uma das mais conhecidas e celebradas obras de Machado, publicada originalmente em 1882 como parte da coletânea Papéis Avulsos, revela tamanha profundidade filosófica e crítica que foi alçada com todo o mérito à condição de um dos grandes textos da literatura brasileira e universal. Com humor ácido, ironia refinada e batendo forte na hipocrisia, O Bruxo do Cosme Velho discute o que de fato vem a ser razão e loucura e em que medida a ciência deve ser responsabilizada no estigma e na anatematização daqueles que não se enquadram nos modelos estipulados pela sociedade.

Visionário, Machado escreve “O Alienista” muito atento às revoluções sociais, na política e no meio científico, no Brasil e no mundo. A medicina caminhava a passos largos e, assim, os estudos sobre o que acontecia nos recônditos do cérebro iam tomando corpo, culminando no que hoje se chama psiquiatria. Na literatura, o Brasil vivia a transição do romantismo para o realismo. Considerado o maior ficcionista brasileiro que já existiu, Machado foi uma figura de proa nesse movimento. Seu ponto de vista cético e implacável sobre as relações abriu uma avenida larga para o sarcasmo realista, deixando o idealismo romântico na poeira. O pessimismo filosófico e a observação sutil, mas rigorosa, dos tipos humanos que apresenta o faz ombrear com Dostoiévski, Tolstói ou Kafka. Com “O Alienista”, Machado dá uma prova cabal de sua maturidade artística, uma vez que o assunto que esgrime continua nas cabeças e nas bocas, tanto mais neste insano século 21.
A princípio, não há nada de mais na história de Simão Bacamarte, o psiquiatra (ou alienista, como se dizia à época) que volta à fictícia Itaguaí, sua cidade natal, na intenção de fundar a Casa Verde, uma instituição destinada a acolher e estudar os desajustados do lugar — ou, melhor, aqueles que ele, a autoridade científica formal, julga desajustados. Machado incute no leitor a imagem de que as hospitalizações são mesmo necessárias e benfazejas, e enquanto brinca com nossa ingenuidade, prepara a metamorfose de Bacamarte, um tirano que passa a internar cidadãos que não apresentam nenhum sinal evidente de loucura. O critério de “normalidade” vai ficando cada vez mais elástico, e gente que o protagonista considera excêntrica, com opiniões que confrontam sua personalidade e sua estreita cosmovisão, são mandadas para a Casa Verde. Sem pressa, a situação sai de controle, revoltas populares eclodem e uma série de eventos tragicômicos desponta, culminando na reviravolta, quase previsível, mas não menos genial.
“O Alienista” é uma obra-prima da literatura brasileira não apenas por sua engenhosidade narrativa e estilo refinado, mas pela profundidade de sua crítica social e filosófica. Com ela, Machado erige uma fábula moral disfarçada de comédia, onde os personagens são ridicularizados em suas contradições. O próprio Bacamarte, inicialmente admirado, se torna uma figura patética. A sátira atinge não apenas o cientificismo, mas também a hipocrisia social, o autoritarismo, a passividade da população, a politicagem provinciana e os modismos intelectuais. Tudo isso contribui para que a obra seja não apenas um estudo sobre loucura, mas um espelho deformado da sociedade brasileira. A Casa Verde é o espaço simbólico onde se manifestam as tensões entre ciência, ética e sociedade. Itaguaí, com seus personagens caricatos, representa o microcosmo de um Brasil que, entre a modernização e a tradição, entre o progresso e o atraso, ainda tenta entender a si mesmo.
Assim, “O Alienista” transcende seu tempo e permanece como uma das narrativas mais inteligentes e relevantes da literatura brasileira. Um clássico que não apenas resiste ao tempo, mas que parece crescer à medida que o mundo se complica. Especialmente nesse sanatório geral sem remédio do lado de baixo do Equador.