Luto e reconstrução: romance com Ben Affleck e Liv Tyler é obra subestimada que chega ao streaming Divulgação / Miramax

Luto e reconstrução: romance com Ben Affleck e Liv Tyler é obra subestimada que chega ao streaming

Havia uma espécie de sentença prévia lançada sobre “Menina dos Olhos” antes mesmo de sua estreia. O desgaste público do casal Ben Affleck e Jennifer Lopez após o fiasco de  “Contato de Risco” serviu como combustível para o cinismo generalizado que passou a orbitar qualquer tentativa de reencontro profissional entre os dois. Para muitos, bastava o pôster do novo filme para antecipar uma catástrofe: a suposta continuação do desastre anterior. O que ninguém esperava era que, por trás da superfície banal de um drama familiar, se escondia uma história tocante sobre perda, reconciliação e o significado mais íntimo da paternidade. Ao abdicar do brilho raso das comédias românticas convencionais e investir numa história centrada em vínculos reais, Kevin Smith entrega aqui sua obra mais sensível e talvez a mais pessoal.

Na linha tênue entre sucesso e ruína, conhecemos Ollie Trinke (Affleck), um executivo do ramo musical que habita o epicentro da cultura nova-iorquina com confiança e vaidade. O nascimento da filha, que deveria selar o ápice de uma trajetória triunfante ao lado da esposa Gertrude (Lopez) implode qualquer ilusão de estabilidade. A morte repentina dela no parto desestrutura não apenas o cotidiano, mas a própria identidade de Ollie, que mergulha numa espiral de descontrole emocional, arrogância mal disfarçada e fracassos públicos. A queda é abrupta: demitido, humilhado e emocionalmente incapaz de cuidar da criança, ele se vê forçado a voltar para a casa do pai em Nova Jersey. Ali, no refúgio mais improvável, se inicia uma jornada silenciosa de reaproximação com a vida.

Não se trata, no entanto, de um arco de redenção moldado por fórmulas de superação instantânea. Ao longo de sete anos, vemos pai e filha — Ollie e Gertie — cultivarem um vínculo construído a partir de tentativas e erros, ternura e irritação, perdas e descobertas. Interpretada com uma espontaneidade desarmante por Raquel Castro, a menina não funciona como simples instrumento de transformação do protagonista; ela é presença ativa, articulada, com opiniões fortes e sensibilidade latente. Quando propõe à escola encenar Sweeney Todd numa apresentação para os pais, Gertie não está apenas sendo excêntrica: ela expressa, à sua maneira, o desconforto de crescer num ambiente onde o luto nunca foi completamente digerido. E essa escolha, por mais irreverente que pareça, é também a chave para entender o tom do filme — um equilíbrio raro entre comicidade e melancolia.

Kevin Smith, até então mais identificado com o humor debochado de O Balconista ou o romantismo torto de Procura-se Amy, revela aqui uma faceta até então subestimada: a capacidade de dirigir com escuta. Ao invés de impor gags, ele permite que o silêncio respire, que os gestos falem, que os personagens digam menos e transmitam mais. O roteiro, mesmo nos momentos em que hesita narrativamente, mantém uma integridade emocional admirável. O espectador não é conduzido por atalhos emotivos, mas convidado a acompanhar um percurso de reconstrução que, como toda cura verdadeira, exige tempo, paciência e imperfeição.

Ainda assim, nem tudo escapa da crítica. Maya, a atendente de videolocadora vivida por Liv Tyler, encarna uma presença ambígua. Sua função narrativa — despertar o interesse amoroso de Ollie e tensionar suas escolhas — não é suficiente para torná-la uma figura complexa. Falta densidade, sobram intenções. No entanto, sua aparição serve a um propósito mais amplo: confrontar o protagonista com a possibilidade de retornar à velha vida, com direito a uma proposta de emprego tentadora em Nova York. E é nesse dilema — entre a sedução do passado e a construção árdua do presente — que o filme encontra sua espinha dorsal. O que vale mais: a imagem de sucesso restaurada ou o cotidiano imperfeito, porém cheio de significado, ao lado de quem se ama?

“Menina dos Olhos” nunca foi um filme sobre a retomada de uma carreira ou sobre a superação de um trauma por vias espetaculares. Sua força está na recusa do espetáculo. Ele prefere a singeleza dos gestos discretos, a delicadeza dos vínculos familiares, o peso das ausências e o poder da presença contínua. Ben Affleck, aqui mais contido do que carismático, oferece uma de suas performances mais honestas, vulnerável sem ser apelativo. George Carlin, como o avô silencioso e pragmático, injeta humanidade onde outros roteiristas talvez insistissem em caricatura. Juntos, eles compõem um trio marcado não pela perfeição dos laços, mas pela disposição em reconstruí-los diariamente.

O mais surpreendente é que um filme condenado a ser lido como fracasso se revele, anos depois, como um retrato maduro de afetos que sobrevivem ao desgaste. É como se o próprio diretor dissesse: não é preciso transformar dor em espetáculo para que ela seja reconhecida, basta tratá-la com honestidade. “Menina dos Olhos” rompe o preconceito com suavidade, mas também com firmeza. E ao fazer isso, lembra ao espectador que, entre o glamour das promessas não cumpridas e a rotina cheia de imperfeições, talvez resida o único sucesso que realmente importa: aquele que nasce quando escolhemos permanecer.

Filme: Menina dos Olhos
Diretor: Kevin Smith
Ano: 2004
Gênero: Comédia/Drama/Romance
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★