Sylvia Plath se matou aos 30 anos de idade. Era uma garota, praticamente. Hoje seria imperdoável, uma vez que poetas suicidas não existem e não influenciam clãs de admiradores indiscutíveis. Como escritora, Sylvia estava à frente de seu tempo. Como mulher, à frente de todos os tempos. Entendeu mistérios da maternidade que são tão obscuros quanto é possível imaginar, e foi uma mãe tão cuidadosa que se retirou de cena apenas depois de garantir que seus filhos estavam seguros. Sua morte, metódica e calculada, foi realizada de maneira poética. Tudo à sua volta foi isolado, pelos mecanismos técnicos viáveis, para que, solitária, privasse a si mesma de respirar o bendito ar de vida que nos sustenta e nutre.
Elementos profundamente simbólicos e delicados envolvem a poesia de Sylvia Plath. Uma combinação perigosa de temas bélicos, como choro de criança, repulsa aos hábitos, desamor e mágoa, rancor pelo pai, observações ácidas de elementos comuns da vida, exuberâncias na apresentação de formas criadas pela natureza, como as ondas do mar, e uma visão muito sutil da dor e angústia causadas pelo regime nazista que marcou a Europa em sua época, somam-se ao seu texto grandemente poético, atual e terrível.
Sylvia é porta-voz de uma classe de seres capazes de penetrar em camadas muito internas do sentimento, do comportamento e da expectativa. A poesia crua, brutal e dolorida de Plath é o reflexo direto de sua mente rápida, inteligente e incomum. Exatamente por isso, ela era uma suicida. O mundo não comporta cérebros assim. Seu problema é a certeza, o conhecimento do mundo, de seu momento e de seus inquilinos, os seus vizinhos. É a sabedoria de que nenhuma filosofia vai superar uma dor causada pelo autoconhecimento, pela certeza de que os humanos (alguns humanos) foram dotados de uma incapacidade intrínseca de suportar uma carga grande demais. Sylvia sabia que, ao contrário das formigas, os humanos não carregam uma carga dez vezes maior que o seu próprio peso. Somos delicados, únicos e necessitamos superar a decadência das horas que determina a intensidade das obrigações impostas. Seu maior problema não era ignorar a realidade, mas compreendê-la demais.
A poesia de Sylvia se desdobra em contemplar o grotesco, como crítica absoluta da futilidade de situações cotidianas e, ao mesmo tempo, a beleza do simples. Aqui temos os cinco melhores poemas (uma análise pessoal) de Sylvia Plath, que funcionam como um apanhado de sua carreira. Desde os poemas mais confessionais e diretos até os mais simbólicos e herméticos. Os poemas de Sylvia são de difícil tradução. As versões que seguem são traduções muito competentes e excelentes, feitas por Marília Garcia, e conferem aos poemas personalidade e estilo, que salvam a essência e a cultura de que são dotados e garantem a beleza e o deslumbramento dos originais em inglês.
Lady Lazarus
Este poema é um ícone do estilo confessional. Plath aborda sua relação com a morte e com o renascimento simbólico após tentativas de suicídio. A voz lírica assume um tom quase performático, de provocação ao leitor e à sociedade.
Eu fiz
outra vez.
Um ano
a cada dez
repito o feito —
tipo um milagre encarnado,
minha pele reluz
como um abajur nazista,
meu pé direito
um peso de papel
e meu rosto apático,
fino lenço judeu.
Arranque o pano,
o meu carrasco.
Você tem
medo de mim? —
O nariz,
os olhos ausentes,
duas fileiras de dentes?
O hálito amargo
some num instante.
Logo, logo
essa carne
que o buraco da terra
engoliu
voltará
para casa em mim:
eu,
essa mulher-que-sorri,
só tenho
trinta anos.
E, assim como um gato,
sete vidas para viver.
Essa é a terceira.
Tanta tralha
pra expurgar
a cada década.
Milhões de filamentos!
A multidão
mascando amendoim
se aglomera
pra ver
desatarem minhas mãos
e meus pés —
um striptease
pra valer.
Senhoras
e senhores,
eis aqui
minhas mãos
e meus joelhos.
Posso ser
só pele e osso,
mas ainda sou
a mesma,
tal e qual.
Na primeira vez,
eu tinha
dez anos.
Foi acidental.
Na segunda
foi proposital.
Queria apagar
e nunca mais voltar.
Rolei fechada,
feito uma
concha do mar.
Tiveram que
me chamar e chamar
e arrancar de mim
os vermes,
como pérolas
grudentas.
Morrer
é uma arte,
como tudo.
É algo
que conheço
a fundo.
Faço parecer
o fim do mundo.
Faço parecer real.
Dizem
que tenho o dom.
É tão fácil
fazer numa cela.
É tão fácil
se esconder
dentro dela.
É como voltar
à cena
já em pleno dia,
ao mesmo posto,
ao mesmo rosto,
ao mesmo grito —
brutal
e divertido.
“Milagre!”,
que sempre
acaba comigo.
Podem ver
minhas feridas,
mas tem um preço.
Ouvir meu coração —
tem um preço.
Ele bate
com força.
E tem um preço,
um preço alto
pra cada palavra
ou contato,
ou sangue,
mesmo que uma gota,
um fio de cabelo,
um pedaço de roupa.
Ora, ora,
Herr Doktor.
Ora,
Herr Carrasco.
Sou sua obra,
seu valioso
bebê de ouro,
que num grito
derrete.
Eu aguardo
e ardo.
Não vá pensar
que não ligo
pro seu medo.
Cinzas,
cinzas —
você atiça o lume.
Carne, osso —
não há nada
mesmo ali —
um sabonete,
uma aliança,
uma obturação de ouro.
Herr Deus,
Herr Lúcifer.
Cuidado.
Muito cuidado.
Das cinzas
me levanto,
ruiva,
sem nenhum disfarce,
e devoro homens
como se respirasse.
Paizinho (Daddy)
Um dos poemas mais famosos e controversos de Plath. Evoca a figura paterna com ambivalência feroz, mesclando dor, revolta e sarcasmo. É marcado por imagens fortes e metáforas históricas perturbadoras (como o nazismo), e representa a libertação simbólica da poeta de figuras de autoridade.
Já não te aturo,
já não te aturo,
sapato espúrio,
no qual vivi
feito pé em apuro,
pálida e pobre,
por trinta anos.
Até para respirar
era duro.
Paizinho,
eu devia ter te matado, juro,
mas você partiu
antes da hora —
mármore pesado,
Deus multiplicado,
estátua medonha
de mau augúrio,
imensa como uma foca.
E a cabeça
no Atlântico excêntrico
entorna tons de verde
no azul-escuro
das águas da bela Nauset.
Sempre rezei
para te resgatar do entulho.
Ach, du.
Nessa língua alemã,
numa cidade polonesa,
arrasada
pelo rolo compressor
de guerras, guerras e guerras.
Mas a cidade
tem um nome comum.
Um amigo polonês
diz que deve haver
uma porção.
Por isso nunca sei
onde mergulho
pra achar suas raízes,
seu casulo.
Nunca falei com você,
nem por murmúrio.
A língua
ficou presa
na minha boca.
Prendeu no arame farpado —
Ich, ich, ich, ich.
Mal conseguia falar.
Eu via você
em qualquer alemão.
E a linguagem obscena
era um motor,
motor que
me despachava
como uma judia.
Judia indo para
Auschwitz, Belsen, Dachau.
Passei a falar como judia.
Bem que eu podia ser judia.
A neve do Tirol
e a cerveja clara de Viena
têm algo de impuro.
Com uma avó cigana
e um destino duro,
e meu jogo de tarô,
meu jogo de tarô —
devo ter algo de judia.
Você sempre me assustou,
com seu Luftwaffe,
seu blablablu.
Um bigode retinho,
o olhar ariano e azul,
homem-tanque,
homem-tanque,
ora, você —
nada de Deus,
mas uma suástica
tão escura
que nem o céu
a suportava.
Toda mulher
gosta de um fascista,
o coturno no rosto,
o coração bruto,
tão bruto como você,
bruto bruto.
Você está de frente
para o quadro-negro, paizinho,
na foto que tenho sua.
A covinha no queixo,
e não no pé,
mas nem por isso
menos endiabrado não, não —
nada menos
que o homem negro
que partiu
meu rubro coração
em dois.
Eu tinha
dez anos
quando te enterraram.
Aos vinte,
tentei morrer
e assim voltar,
voltar para você.
Achei
que até meus ossos
fariam isso.
Mas me tiraram do saco,
me refizeram com cola.
E descobri, então,
o que eu devia fazer.
Criei um protótipo seu:
um homem de preto
com olhar Meinkampf,
e uma queda
por instrumentos de tortura.
Então eu disse:
eu aturo, eu aturo.
Paizinho,
agora acabou.
O telefone preto
está lá fora,
no escuro.
As vozes
não conseguem passar.
Se matei um homem,
então foram dois —
também o vampiro
que disse
que era você
e bebeu meu sangue
por um ano —
aliás, por sete anos,
pra ser precisa.
Paizinho,
agora pode
se deitar outra vez.
No seu coração preto
e volumoso
há uma estaca.
Os aldeões
nunca gostaram de você.
Eles dançam
e pisam em você.
Eles sempre souberam
que era você.
Paizinho,
seu desgraçado,
agora acabou.
Ariel
Poema que dá nome ao livro póstumo publicado por Ted Hughes. Trata-se de uma experiência extática e simbólica de transcendência, através da metáfora de uma cavalgada vertiginosa ao amanhecer. Reúne o ritmo, a fúria e o misticismo característicos da maturidade poética de Plath.
Pausa
no escuro.
Depois,
um jorro azul
impreciso,
feito de rochedos
e lonjura.
Leoa divina,
somos só uma,
eixo de joelhos
e calcanhares!
— O sulco
se abre
e vai adiante,
ao lado do arco pardo
do pescoço
que não alcanço.
Olhos de
jabuticaba
lançam anzóis
escuros —
Sombras,
respingos
de um sangue preto
e espesso.
Outra coisa
me arrasta
pelo ar —
pernas,
cabeleira;
o calcanhar
a descamar.
Godiva,
branca,
vou me desfolhando —
mãos mortas,
dogmas mortos.
Agora sou
a espuma do trigo,
o brilho do mar.
O choro
da criança
derrete
na parede.
E eu sou
a flecha,
o orvalho suicida
que se lança
pronto para um
mergulho
dentro do
olho vermelho,
no caldeirão
da manhã.
Tulipas (Tulips)
Escrito durante uma internação hospitalar, esse poema reflete sobre a tensão entre a paz do vazio e o retorno da consciência e da vida — simbolizados pelas tulipas vermelhas. Tem uma beleza contida, meditativa e desconfortável.
As tulipas estão
acesas demais,
aqui é inverno.
Tudo está
tão branco,
calmo,
coberto de neve.
Aprendo a ficar em paz,
deitada sozinha,
quieta,
como a luz
nas paredes brancas,
na cama,
nas mãos.
Não sou ninguém;
não tenho nada
a ver com explosões.
Dei meu nome
e minhas roupas
às enfermeiras,
meu histórico
ao anestesista
e meu corpo
aos cirurgiões.
Deitaram minha cabeça
entre o travesseiro
e o lençol,
feito um olho
entre pálpebras brancas
que não se fecham.
Pupila estúpida,
quer sorver tudo.
As enfermeiras
não me incomodam
com seu vaivém,
são gaivotas
de chapéus brancos
que voam para longe,
fazendo coisas com as mãos,
todas iguais,
impossível dizer
quantas são.
Meu corpo é um seixo.
Cuidam dele
como a água
alisa e acaricia os seixos
ao passar por eles.
Com seringas brilhantes,
elas me injetam
o torpor.
Agora que estou confusa,
canso com tanto peso —
a mala de couro
que trouxe
é uma caixinha preta de remédio.
Na foto de família,
o marido
e a filha sorriem.
Seus sorrisos
grudam em minha pele,
ganchinhos sorridentes.
Deixei as coisas deslizarem,
um cargueiro de trinta anos,
teimoso,
pendurado
em meu nome
e endereço.
Aqui
cortaram
meus laços afetivos.
Medrosa e despida
sobre a maca verde
de plástico,
olhava o jogo de chá,
as roupas de cama,
meus livros
afundando sozinhos,
quando a água
cobriu minha cabeça.
Agora virei freira.
Nunca fui tão pura.
Não queria flores,
só queria ficar
deitada,
a palma das mãos
para cima,
e me sentir
vazia.
Você não faz ideia
da sensação
de liberdade —
a paz é tão grande
que ofusca;
não pede nada
em troca.
Só uma etiqueta
com o nome,
uma ninharia.
No fim,
é assim
que os mortos terminam.
Imagino cada um
abrindo a boca
para receber a paz
feito uma hóstia.
Primeiro,
as tulipas estão
vermelhas demais
e me ferem.
Mesmo com o papel
de presente,
ouço a respiração delas
por trás
dos lenços brancos,
feito um bebê horrível.
O vermelho
das tulipas
conversa com
minhas feridas.
Elas são sutis:
parecem flutuar,
mas pesam sobre mim,
perturbam
com suas línguas afiadas,
com sua cor,
doze pesos de chumbo
vermelhos
presos no pescoço.
Antes,
ninguém me vigiava;
agora, sim.
As tulipas
viradas para mim,
a janela atrás,
por onde entra
a luz que vem
e depois vai.
Vejo-me
deitada, ridícula,
silhueta de papel
entre o olho do sol
e os olhos das tulipas,
e não tenho rosto.
Gostaria
de me apagar.
As tulipas
devoram meu oxigênio.
Antes delas,
o ar estava calmo —
inspira,
expira,
um vaivém
sem sobressaltos.
Então,
elas ocuparam espaço
como um estrondo.
Agora o ar
rodopia
ao redor delas,
como um rio
ao redor
da máquina enferrujada
que afundou.
Elas prendem
minha atenção,
que antes era alegre,
livre,
descomprometida.
Também as paredes
parecem aquecidas.
As tulipas
deviam estar presas,
como feras.
Elas se abrem
como a boca
de um felino selvagem,
e eu sinto
meu coração:
que abre e fecha
cada botão vermelho
em flor —
só para mostrar
seu amor.
Tomo um gole
de água morna
e salgada,
que lembra o mar
e vem de muito longe,
do país da saúde.
Berck-Plage
A voz do poema fica oscilando entre um olhar quase científico sobre as coisas e momentos de mergulho profundo nos sentimentos. A pessoa que fala parece se afastar de si mesma, como se estivesse vendo tudo de fora, e isso deixa o poema ainda mais impactante. É como se ele olhasse para a morte (e também para a vida) com uma frieza que assusta.
1
Esse aqui é o mar,
então, essa imensa suspensão.
O bálsamo do sol
atrai minhas feridas.
Sorbets de cores eletrizantes,
tirados do freezer
por garotas pálidas,
viajam em mãos chamuscadas.
Por que tanto silêncio,
o que estão escondendo?
Tenho duas pernas
e caminho sorrindo.
Um tapete de areia
amortece a vibração;
quilômetros a fio de areia —
vozes ao longe
flutuam em ondas,
quase inaudíveis.
O olhar, escaldado
pelas superfícies lisas,
volta
num efeito bumerangue,
elástico ancorado,
e fere seu dono.
Não é de admirar
que ele use óculos escuros.
Não é de admirar
que esteja com uma batina escura.
Aí vem ele,
em meio aos pescadores de cavalinha,
que lhe viram as costas.
Estão brincando com losangos
pretos e verdes
como se fossem partes de um corpo.
O mar,
depois de cristalizar cada um,
recua
cheio de serpentes,
com um longo assobio de dor.
2
Essa bota preta
não tem pena de ninguém.
Por que teria?,
se ela é o carro fúnebre
de um pé morto,
nobre pé, morto e sem dedos,
do padre
que explora seu livro
como um poço,
diante dele
as páginas erguidas
feito paisagem.
Biquínis obscenos
se escondem nas dunas,
seios e ancas de açúcar de confeiteiro,
com pequenos cristais
afagando a luz,
enquanto uma piscina esverdeada
abre os olhos,
enjoada por tudo que engoliu —
pernas, cenas, gritos.
Atrás do bunker de concreto,
dois amantes se descolam.
Ó louça branca marítima,
quantos suspiros contidos,
quanto sal na garganta…
E o espectador, trêmulo,
esticado feito um pano,
imerso na virulência calma,
e uma alga,
peluda como um púbis.
3
Nas sacadas do hotel,
as coisas brilham.
Coisas,
coisas,
coisas —
cadeiras de roda de aço,
muletas de alumínio,
tanta doçura salina.
Por que eu deveria
andar além do quebra-mar,
lugar cheio de cracas?
Não sou uma enfermeira,
atenta, de branco.
Não sou um sorriso.
Essas crianças buscam algo,
cheias de anzóis e gritos.
E meu coração é tão pequeno
para curar seus disparates infantis.
Aqui temos um homem de lado:
as costelas vermelhas
e os nervos em ramos,
e aqui está o cirurgião:
o olho espelhado —
uma faceta do conhecimento.
Num quarto,
sobre o colchão listrado,
um homem velho vai se apagando.
Sua mulher, aos prantos,
não pode fazer nada.
Cadê as pedras dos olhos,
amarelas e preciosas,
e a língua,
safira de cinzas?
4
O rosto
é um bolo de festa
no papel crepom.
Agora ele tem
um ar superior,
como se possuído
por um santo.
As enfermeiras, de branco,
já não são tão belas;
perdem o viço,
como gardênias ao toque.
A cama foi levada
para o meio do quarto.
Ser completo é isso.
É horrível.
Será que está
de pijama ou de terno
sob o lençol grudento,
de onde o nariz maquiado
assoma tão branco,
imaculado?
Puseram um livro
para firmar o queixo,
e cruzaram as mãos
que diziam:
adeus, adeus.
Agora os lençóis limpos
voam ao sol,
as fronhas são purificadas.
Que bênção,
que bênção:
o caixão comprido de carvalho
sendo levado
por homens estranhos,
e uma data gravada
em prata
no caixão
com extraordinária calma.
5
O céu cinzento pesa,
os morros
como um mar esverdeado
desdobram-se ao longe,
escondendo suas fendas —
fendas que embalam
os pensamentos da esposa:
barcos práticos e simples,
cheios de vestidos
e chapéus
e louças
e filhas casadas.
Na sala de visitas
da casa de pedra,
uma cortina ondula
na janela aberta,
ondula e derrama,
vela lamentável.
Esta é a língua
do homem morto:
lembrem, lembrem.
Ele está longe agora.
Os gestos que fazia
são móveis
na sala de estar —
apenas decoração.
Enquanto isso,
a palidez avança —
a palidez das mãos,
dos rostos familiares,
a palidez exultante
das retinas em fuga.
Em fuga rumo a nada:
lembrem-se de nós.
Os bancos vazios
da memória
observam as pedras,
as fachadas de mármore
com veios azuis
e os vasos de narcisos amarelos.
E tão bonito aqui de cima:
lugar para um respiro.
6
Como são espessas
essas folhas de limão! —
bolas verdes podadas,
as árvores conduzem
à igreja.
A voz do padre
recebe o cadáver.
O ar
é rarefeito.
E os morros
ecoam as badaladas fúnebres,
resplendor de trigo
e terra crua.
Qual o nome
desta cor? —
sangue velho
nas paredes caiadas
que o sol cura,
sangue velho
de membros cortados,
corações queimados.
A viúva
com sua carteira preta
e três filhas,
inevitável
em meio às flores,
cobre o rosto
feito linho fino
para não se desfazer
de novo.
E então o céu,
infestado de sorrisos suspensos,
passa,
nuvem atrás de nuvem.
E as flores da noiva
gastam seu brilho,
e a alma
é uma noiva
num lugar calmo,
e o noivo
é vermelho
e inexpressivo.
7
Atrás do vidro do carro,
o mundo ronrona,
isolado
e brando.
Estou de preto,
tranquila,
faço parte do grupo.
Deslizo
em marcha lenta
atrás do cortejo.
O padre
é um barco,
tecido de alcatrão,
triste
e taciturno,
seguindo
o caixão
coberto de flores,
como se fosse
uma linda mulher —
a crista de seios,
pálpebras
e lábios,
avança
no alto do morro.
Então,
no pátio cercado,
as crianças sentem
o cheiro
de graxa de sapato,
e viram o rosto
devagar,
sem palavras,
olhos arregalados
para uma coisa
magnífica —
seis chapéus pretos
na grama,
um losango de madeira,
e uma boca vazia,
vermelha
e monstruosa.
De repente,
o céu entorna
para dentro da cova
feito plasma.
Acabou a esperança.
Aqui
é o fim.