Falas curtas, de Anne Carson — pequenos contos que dizem mais do que romances inteiros

Falas curtas, de Anne Carson — pequenos contos que dizem mais do que romances inteiros

Definições, às vezes, são falhas. Como definir o que lemos como minicontos, microcontos ou nanocontos? Esses dois últimos prefixos, muito utilizados nas ciências duras, querem dizer ordens de grandeza associadas aos valores decimais 0,00001 e 0,000000001, que são muito pequenos. Emprestado da matemática, podemos dizer que textos pequenos, muito pequenos e extremamente pequenos podem ser definidos pelos prefixos citados. Uma questão que paira é se esses textos curtos podem ser classificados como literatura. A resposta, se pudermos lançá-la ao palco, é sim. Obviamente, um texto literário depende mais do autor e de sua qualidade literária do que de seu tamanho. Nos contos muito pequenos, existem, quando bem feitos, início, meio e fim, ou a surpreendente compreensão de um contexto, de forma a explorar uma estética particular e, não necessariamente, uma história, mas um evento marcante, que pode causar um grande impacto. Isso é excelente para a literatura: textos intensos, tensos, minimamente amplos e restritamente perfeitos.

Falas Curtas
Falas Curtas, de Anne Carson (Relicário, 108 páginas, tradução de Laura Erber)

Anne Carson, com seu “Falas Curtas”, sabe usar poucas palavras para dizer muita coisa. E, quando digo muita coisa, falo de algo amplo. Os contos de seu livro são conceituais, pois tratam de uma narradora que fala de coisas e situações ordinárias, misturando erudição e leveza de forma extraordinária. Uma coisa curiosa sobre a moda dos microcontos é que eles não são uma novidade. Por exemplo, o famoso conto O dinossauro, de Augusto Monterroso, data de 1959. Dá para colocá-lo inteiro aqui sem que o Editor se irrite com a quantidade de caracteres deste texto: “Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.” Extremamente pequeno e profundamente engraçado e interessante. É um clássico, indiscutível. Anne Carson fez isso, contou histórias curtas, há um bom tempo. O livro é de 1992, mas é extremamente atual. Com analogias ora belíssimas, ora ácidas, Carson conta um pouco de sua visão das coisas, das pessoas e do mundo. Incluindo personagens famosos, ela relativiza temas e louva situações.

Amparados por uma visão crítica única, os contos são verdadeiras pedras lapidadas no esmeril de uma estética literária singular e competente. Como exemplo de perspicácia, erudição e metalinguagem, uma das falas curtas é exímia em ritmo e como representante dos elementos citados acima que garantem a qualidade do microconto: “Fala Curta Sobre Van Gogh. Eu bebo para entender o céu amarelo, o enorme céu amarelo, dizia Van Gogh. Quando olhava o mundo, enxergava os pregos que prendem as cores às coisas e via a dor dos pregos”.

“Falas Curtas” pode ser considerado como um estudo breve sobre literatura e suas possibilidades. É um livro para além da diversão impactante das falas espirituosas baseadas em visões particulares de uma mulher inteligente sobre o mundo. Isso seria reduzir Carson a uma entusiasta, coisa que qualquer um pode fazer. Literatura carrega a obrigatoriedade da subversão e a necessidade do apuro estético. Para tanto, o conto intitulado Fala Curta sobre defloração é uma pequena obra-prima atemporal. Vou registrá-lo aqui, já que o espaço que ele ocupa é um “microespaço”: “As ações numa vida nem são tantas. Entrar, seguir, continuar em segredo, atravessar a ponte dos suspiros. E, quando você me desonrou, entendi que a desonra é uma ação. Aconteceu em Veneza, as cordas vocais ficaram inchadas. Saí estrondeando por toda Veneza, por baixo e por cima das pontes, mas você tinha ido embora. Mais tarde, no mesmo dia, telefonei para o seu irmão. O que houve com a sua voz? ele perguntou”.

Pequenos ou grandes, os textos são literários quando são bem escritos. A estética literária é invariante sob mudança na quantidade de caracteres. Assentada em uma escola que não data de hoje, mas que cresce e consegue novos adeptos progressivamente, essa maneira de escrever tem nos textos de Anne Carson um precursor de um estilo narrativo muito eficaz e completo.


Livro: Falas curtas
Autor: Anne Carson
Páginas: 108 páginas
Editora: Relicário
Nota: 8/10

Solemar Oliveira

Doutor em Física, professor universitário e pesquisador com trabalhos publicados em periódicos acadêmicos nacionais e internacionais. Também atua como prosador, poeta, crítico e ensaísta. Autor dos romances “Desconstruindo Sofia” e “A Confraria dos Homens Invisíveis”, além do livro de contos “A Breve Segunda Vida de uma Ideia”, destacado entre os melhores de 2022. Seu livro “As Casas do Sul e do Norte”, publicado pela editora da Revista Bula, recebeu o prêmio Hugo de Carvalho Ramos, uma das mais tradicionais láureas literárias do Brasil.