Milan Kundera (1929-2023) estabeleceu em “A Insustentável Leveza do Ser” uma dança de amores sensuais e perturbados, talvez a mais semioticamente complexa da literatura ocidental. Ambientado na então Checoslováquia durante a Primavera de Praga, em 1968, o romance se alicerça sobre a vida — e, mais, sobre a intimidade — de quatro figuras: Tomas, Teresa, Sabina e Franz. Tomás, um cirurgião mulherengo, vive um impasse que torna-se mais e mais avassalador ao longo das três centenas páginas de Kundera, justamente por espraiar-se para os outros três personagens. Philip Kaufman assimila muito do incômodo existencial forjado pelo escritor em sua adaptação do clássico de há quarenta anos, fixando-se na pletora de sentimentos a uni-los e apartá-los, o que, evidentemente, suscita no espectador a impressão de que até a promiscuidade já foi mais lírica. O roteiro de Kaufman e Jean-Claude Carrière (1931-2021) atravessa a existência dos quatro infelizes que servem de base à trama, ora com violência, ora com ternura, mas nunca de modo gratuito, ainda que um festival de corpos nus derrame-se sobre quem assiste.
Tomas é um homem dividido entre sua sede de liberdade sexual extrema e o insólito amor por Tereza. Sedutor incorrigível, Tomas vê o sexo como algo distinto do amor, uma filosofia de vida que se desfaz aos poucos à medida que sua ligação com Tereza se aprofunda. Ele tem um caso lúbrico com Sabina, uma pintora com quem partilha o ideal de um relacionamento sem emoções ou compromisso, a perfeição encarnada de que cada usufrui sozinho. Um dia, Tomas é solicitado na zona rural, e enquanto espera numa acanhada estação de trem, seus olhos pousam sobre uma jovem garçonete, Tereza. Ela lhe traz um conhaque, e ao fim do expediente, quando os dois saem para uma pequena caminhada, resta óbvio que há algo especial no ar. Tomas precisa voltar a Praga, e sua rotina de devassidão parece que vai seguir do ponto onde havia parado, não fosse por Terezair a sua procura algum tempo depois.Meio a contragosto, ele a aceita em sua casa, e eles acabam se por se casar. Mas Tomas sabe que não pode afrontar sua essência libertária tanto assim.
Em meio aos protestos contra a invasão soviética à Checoslováquia, os personagens são retratados em cenas marcantes. Tereza vira fotógrafa e tenta fazer chegar ao resto do mundo as imagens da revolta. Ela e o agora marido trocam Praga por Genebra, onde Sabina está morando, e o fogo do velho caso entre a pintora e Tomas reacende, o que atinge Tereza de um modo ambíguo. Ainda que o ame, ela deixa Tomas, se esforça por também viver o amor livre, mas é romântica para tal aventura. Sabina por seu turno conhece Franz, de Derek de Lint, um professor que se apaixona por ela e decide abandonar a esposa. É aí que o contexto político ganha força. A invasão da Checoslováquia pelas forças soviéticas, retratada com imagens documentais e realismo surpreendente, serve como fundo dramático para a transformação interior dos protagonistas. A opressão externa contrasta com os dilemas internos, reforçando a relação entre a liberdade política e a liberdade individual. Tomas, por exemplo, paga um preço alto por sua integridade ética e pessoal, recusando-se a escrever uma retratação para o regime. O filme, nesse sentido, traça um retrato pungente das consequências do autoritarismo sobre as esferas mais íntimas da vida humana.
A narrativa do filme é não linear e pontuada por digressões, à semelhança do romance original. Kaufman consegue transpor para a linguagem cinematográfica a densidade filosófica do livro, ainda que com inevitáveis simplificações. O conceito da “insustentável leveza do ser” — a ideia de que, se a vida ocorre uma única vez, cada escolha e cada gesto são absolutamente irrelevantes — é abordado não como um conceito abstrato, mas como uma sensação que permeia o cotidiano dos personagens. Numa das passagens verdadeiramente antológicas do registro de Kaufman, Tereza vinga-se, a seu modo, de Tomas, numa sequência em que forma com Sabina um delicado balé homoerótico. Daniel Day-Lewis é, como sempre, espetacular, mas o filme é mesmo de Juliette Binoche e Lena Olin, nessa história atemporal que convida-nos a refletir sobre nossas escolhas e a duvidar do sentido da existência.
★★★★★★★★★★