Como fenômeno sociológico, político e intelectual, o feminismo transformou a maneira como as mulheres são vistas e representadas na sociedade. A literatura, como espelho e ferramenta de afirmação cultural da humanidade, desempenhou papel fundamental nessa jornada. Ao longo da História, as escritoras feministas utilizaram a palavra como forma de resistência, denúncia e reconstrução de paradigmas. O feminismo na literatura não apenas reivindicou espaço para as mulheres como artistas, mas também para a multiplicidade de suas experiências enquanto personagens e leitoras. O feminismo molda e continua moldando a literatura, impactando a crítica literária e o cânone ocidental.
A presença das mulheres na literatura é milenar, mas sua participação como produtoras de conhecimento literário foi historicamente marginalizada. Durante séculos, a escrita foi uma atividade reservada aos homens, enquanto as mulheres eram relegadas ao espaço do lar. A ascensão do feminismo no século 19, com autoras como Mary Wollstonecraft (1759-1797), autora de “A Reivindicação dos Direitos da Mulher” (1792), marca um ponto de virada. Wollstonecraft argumentava que a educação das mulheres era fundamental para sua emancipação, antecipando questões que seriam retomadas pelas mulheres que as viessem a suceder. Com o sufragismo e a consolidação do pensamento feminista, a literatura passou a ser um campo de batalha simbólico onde as mulheres exigiam voz, representação e reconhecimento. Autoras como Virginia Woolf (1882-1941), com ”Um Quarto Todo Seu“ (1929), problematizaram a ausência feminina no cânone literário, refletindo sobre os obstáculos enfrentados pelas mulheres escritoras.
Ao longo da História, a mulher foi representada sob diversos estereótipos na literatura: a donzela em perigo, a mãe devotada, a esposa submissa ou a vamp — e geralmente por homens. Essas representações, forjadas por visões patriarcais, limitavam a complexidade da experiência feminina. O feminismo literário buscou descontruir essas imagens e criar novas possibilidades de representação. Mulheres como Woolf, Clarice Lispector (1920-1977), Margaret Atwood e Toni Morrison (1931-2019) tiveram de sobrepujar o preconceito velado e subverter o modelo literário que vigia desde o princípio dos tempos. Equívocos aconteceram e seguiram acontecendo, como se nota na lista abaixo, com cinco exemplos de publicações supostamente inclusivas, mas que perpetuam visões limitadas acerca do papel sociopolítico e mesmo biológico da mulher. Uma asnice que deve ser execrada por todos.

O livro “O Que Realmente as Mulheres Querem?”, do jornalista norte-americano Daniel Bergner, é uma investigação provocativa e minuciosa sobre o desejo sexual feminino, que desafia ideias enraizadas na cultura, na ciência e na psicologia. Publicado originalmente em 2013, o livro reúne entrevistas com mulheres, cientistas, terapeutas sexuais e pesquisadores, além de análises de experimentos laboratoriais, para questionar as suposições tradicionais sobre a libido feminina. A inspiração de Bergner para escrever o livro surgiu de uma reportagem de sua própria autoria, de 2009. Nela, ele explorava o desejo feminino e as pesquisas emergentes que desafiavam as noções convencionais sobre a sexualidade das mulheres. A repercussão da matéria levou-o a aprofundar o tema, resultando na publicação do livro. Bergner argumenta que muitas das ideias tradicionais sobre o desejo feminino são baseadas em estereótipos e suposições culturais, e não em evidências científicas. Ele questiona a visão de que as mulheres são naturalmente monogâmicas, menos interessadas em sexo casual e mais motivadas por conexões emocionais do que os homens. Ao entrevistar mulheres e analisar estudos científicos, o autor revela que o desejo feminino é tão complexo, variado e intenso quanto o masculino. Bergner relata uma série de experimentos que desafiam as ideias convencionais sobre o desejo feminino. Em um estudo, mulheres foram expostas a diferentes tipos de estímulos sexuais enquanto suas respostas fisiológicas eram medidas. Os resultados mostraram que as mulheres respondiam a uma ampla gama de estímulos, incluindo aqueles que não se alinhavam com suas preferências declaradas, sugerindo que o desejo feminino é mais amplo e menos restrito do que se pensava.

“A Menina que Roubava Livros” é uma obra singular de Markus Zusak, autor australiano de ascendência alemã e austríaca, publicada originalmente em 2005. Desde então, tornou-se um best-seller mundial e ganhou adaptações teatrais e cinematográficas. A narrativa ambienta-se na Alemanha nazista, especificamente entre os anos de 1939 e 1943, durante o auge do regime de Adolf Hitler (1889-1945) e oferece uma perspectiva comovente da guerra, do sofrimento e da resistência através dos olhos de uma criança. O livro é único por ser narrado pela Morte, uma figura personificada com traços reflexivos e até melancólicos, que observa o sofrimento humano com compaixão e espanto. Esse ponto de vista incomum, somado à linguagem poética de Zusak e ao retrato emocionalmente intenso dos personagens, transforma a leitura em uma experiência profunda e inesquecível. A história gira em torno de Liesel Meminger, uma jovem alemã enviada para viver com pais adotivos em Molching, uma cidade fictícia nos arredores de Munique. Durante a viagem até sua nova casa, seu irmão mais novo morre, e Liesel encontra um livro caído na neve — O Manual do Coveiro. Esse é o primeiro dos muitos livros que ela “roubará” ao longo da narrativa. Liesel vai morar com Hans e Rosa Hubermann, um casal pobre, mas caloroso à sua maneira. Hans, um pintor de paredes e ex-soldado, é gentil e paciente; Rosa, embora rude e boca-suja, demonstra afeto à sua maneira. Em Molching, Liesel aprende a ler com Hans e desenvolve uma paixão intensa pelas palavras e pela literatura. Através dessa descoberta, ela constrói uma ponte entre sua infância marcada por perdas e um mundo de resistência silenciosa à brutalidade do regime nazista.

“As Virgens Suicidas”, romance de estreia de Jeffrey Eugenides, publicado em 1993, é uma narrativa envolvente, melancólica e profundamente poética que retrata a vida e a morte das cinco irmãs Lisbon, adolescentes que vivem em um subúrbio dos Estados Unidos nos anos 1970. A história é contada a partir da perspectiva coletiva de um grupo de homens, já adultos, que relembram a obsessão juvenil que tiveram pelas irmãs e tentam, anos depois, compreender os motivos que levaram ao trágico desfecho: o suicídio de todas elas. A escrita de Eugenides é lírica e atmosférica, criando uma aura de mistério e nostalgia que permeia toda a obra. Ao optar por uma narrativa em primeira pessoa do plural, o autor oferece uma visão externa e, ao mesmo tempo, íntima da família Lisbon, destacando o fascínio e a impotência dos narradores diante da deterioração emocional das meninas. A história levanta questões sobre repressão familiar, sexualidade, adolescência, culto à beleza e à tragédia. A figura materna rígida e o ambiente opressor simbolizam uma sociedade sufocante que contribui para o colapso psicológico das irmãs. Ao final, “As Virgens Suicidas” revela-se mais uma reflexão sobre o luto, o desejo e a memória do que um drama investigativo, evocando um sentimento de perda inevitável e incompreensível.

Charles Bukowski (1920-1994) é, sem dúvida, um dos escritores mais polêmicos e provocadores da literatura do século 20. Nascido na Alemanha em 1920 e criado nos Estados Unidos, Bukowski construiu uma carreira literária marcada por um estilo direto, vulgar e visceral, que lhe rendeu tanto críticas ferozes quanto uma base de leitores apaixonados. Seu alter ego literário, Henry Chinaski, aparece em diversos de seus romances e se tornou uma figura emblemática da literatura marginal. Em “Mulheres”, publicado originalmente em 1978, Bukowski entrega um dos relatos mais íntimos e brutais de sua vida afetiva e sexual, por meio da persona de Chinaski. “Mulheres” é, em essência, uma longa confissão das relações do protagonista com diversas parceiras, entrelaçadas com sua rotina boêmia, sua luta com a fama literária tardia e seu olhar cínico sobre o mundo. É um texto que, ao mesmo tempo, fascina e incomoda, e que merece uma análise detalhada sobre seus temas, estilo e personagens. O tratamento que Bukowski dá às mulheres em sua obra é motivo de amplas controvérsias. Críticos o acusam de misógino, ao passo que defensores o enxergam como brutalmente honesto em retratar os instintos e as contradições humanas. Em “Mulheres”, essa dicotomia torna-se mais evidente. Chinaski não idealiza as mulheres. Ele as vê como fontes de prazer, confusão, sofrimento e, ocasionalmente, companhia. Em suas descrições, ele é frequentemente grosseiro, focando no corpo, no sexo e na loucura. No entanto, por mais que o olhar de Chinaski seja sexualizado, ele também revela, ainda que de forma distorcida, uma admiração pelas mulheres que o confrontam e deixam-no vulnerável. É possível ler “Mulheres” de muitas formas: como uma confissão, como uma sátira, um diário ou até um grito de socorro. Por trás das cenas de sexo e das bebedeiras, há um homem tentando entender por que amar é tão difícil e por que a solidão parece invencível.

Publicado em 1947, “A Espuma dos Dias” é considerado o romance mais emblemático de Boris Vian. A narrativa mistura elementos de fantasia, poesia e crítica social, criando um universo único que reflete as inquietações do pós-guerra francês. A história gira em torno de Colin, um jovem rico e entusiasta do jazz, que vive em uma Paris surrealista. Ele se apaixona por Chloé, e os dois vivem um romance intenso. Porém, Chloé adoece com uma condição inusitada: um nenúfar cresce em seu pulmão, e a única cura é cercá-la de flores. Enquanto Colin gasta sua fortuna tentando salvá-la, seu amigo Chick se perde em uma obsessão pelo filósofo Jean-Sol Partre, paródia de Jean-Paul Sartre, negligenciando sua namorada Alise. A narrativa acompanha a decadência física e emocional dos personagens, culminando em um desfecho melancólico. Vian emprega uma linguagem inventiva e poética, criando neologismos e situações absurdas que desafiam a lógica. Objetos ganham vida, ambientes se transformam conforme o estado emocional dos personagens, e o tempo e espaço são maleáveis. Esse estilo reflete a influência do surrealismo e do existencialismo na obra. “A Espuma dos Dias” é aclamado por seu lirismo e surrealismo, mas a personagem feminina literalmente adoece por causa de uma flor no pulmão — uma metáfora bonita, porém passiva, que apaga a essência da mulher.