Havia um açougue dentro da casa. Não apenas pela carne, pelo sangue, pela frieza do pai — mas porque tudo ali parecia já estar esquartejado antes mesmo de ser vivido. Em “A Vida Real”, a escritora belga Adeline Dieudonné esculpe, com precisão cirúrgica, a anatomia de uma infância sob cerco. E não o cerco metafórico dos livros de memórias melancólicas ou da infância bucólica perdida, mas o cerco literal da violência: aquela que range ossos, estilhaça olhos, mata animais, quebra relógios e desfaz os nervos em silêncio.
É neste cenário que uma menina de dez anos — a narradora sem nome — tenta costurar, sozinha, os destroços do tempo. Após presenciar o acidente que traumatiza para sempre o irmão mais novo, ela decide que o presente é inaceitável e, por isso, cria uma obsessão: retornar no tempo e impedir o que aconteceu. Para isso, estuda física, neurociência, relatividade, qualquer coisa que lhe ofereça uma fresta para reescrever os dias. Se Deus não se move, que se mova a menina.
Dieudonné, que estudou biologia antes de se dedicar à escrita, parece construir a protagonista como se montasse um organismo em reação. Cada pensamento é uma célula lutando contra o colapso. E o que mais impressiona não é a violência explícita, mas a maneira como a autora organiza o horror: com frases exatas, estruturas matemáticas, humor ácido e uma secura quase biológica. Não há sentimentalismo — há sobrevivência. Como se, para escapar do trauma, fosse preciso transformá-lo em fórmula.

No centro da história, o pai. Caçador, alcoólatra, estéril de afeto. A mãe, figura etérea, afundada na apatia. O irmão, Gilles, que de criança radiante se torna um casulo de dor e mutismo. A menina, então, se desloca. Em vez de pedir amor, ela constrói teorias. Em vez de fugir, ela investiga. Em vez de enlouquecer, ela se propõe a resolver, como quem resolve uma equação. É nesse desvio do sentimental que o livro encontra sua força: A Vida Real não é um diário de dor, é um manifesto de resistência.
Mas há algo ainda mais perturbador escondido sob a superfície do romance — algo que hoje, passados alguns anos desde sua publicação, soa como profecia: a presença do corpo substituto. Na tentativa desesperada de salvar o irmão, a narradora desenvolve um fascínio pelo controle, pela idealização, pela possibilidade de reconstruir não só o tempo, mas o outro. O corpo do irmão deixa de ser carne para tornar-se projeto. A vida, uma equação para ser reescrita. A infância, um laboratório de correção.
Esse impulso, que nasce do amor e do desespero, antecipa, com uma delicadeza assustadora, a lógica contemporânea dos bebês reborn — bonecos hiper-realistas que replicam recém-nascidos em detalhes grotescamente minuciosos, adotados por mulheres como se fossem filhos vivos. É claro que “A Vida Real” não menciona essa prática. Mas o gesto está lá: a tentativa de anular o trauma com um simulacro. De substituir a dor por uma versão controlável da ternura. De recriar o que o mundo estragou com um artefato que nunca chora sem comando, nunca morre, nunca falha.
Ao transformar a menina em uma quase cientista do afeto, Dieudonné traça uma linha precisa entre o afeto e a perversão. Porque não há nada de mágico em querer voltar no tempo. O que há é uma tragédia muda: a constatação de que, em certas casas, o amor é tão ausente que o real precisa ser reinventado à força. Quando a menina se torna adolescente, o projeto ganha corpo, literal e metaforicamente. O romance então cresce junto com ela, adensando-se até se aproximar da distopia íntima. A linguagem, que era cortante, torna-se grave. A física dá lugar ao gesto.
Nada, porém, prepara para o modo como Dieudonné conduz o desfecho. Não porque ele surpreenda em termos narrativos — mas porque é um desfecho que não se deseja. Há algo de cruel em toda infância contada no passado. Mas aqui, a crueldade é redobrada: ela não é apenas recordada, é mantida em suspensão. O trauma, como no culto aos reborn, nunca é curado. É mantido. Preservado. Cultuado. O tempo não volta, mas se repete — como um experimento fracassado que insiste em buscar outro resultado.
Há, é claro, beleza no meio disso tudo. Uma beleza desconfiada, árida, quase involuntária. Está nos momentos em que a menina observa o mundo com espanto, nos fragmentos de humor involuntário, na maneira como a linguagem se recusa à histeria. O livro não chora, mesmo quando sangra. E é por isso que dói tanto.
“A Vida Real” é uma denúncia — mas não da violência doméstica, do patriarcado ou da negligência parental, embora tudo isso esteja ali, palpitando. É uma denúncia da precariedade do afeto. Da impossibilidade de crescer inteiro num mundo onde o amor virou item de ficção. Um mundo onde, para viver, é preciso antes imaginar uma vida.
E se essa vida não for possível no real, que seja ao menos viável no artifício. Um bebê reborn, um irmão ideal, um passado melhor. Quem sabe até um romance.