O romance mais desconcertante e ferozmente inteligente publicado no Brasil em 2025

O romance mais desconcertante e ferozmente inteligente publicado no Brasil em 2025

Em “James”, publicado em 2024 (no Brasil, em 2025) e laureado com o Pulitzer de Ficção, Percival Everett realiza um feito raro: transforma um clássico da literatura canônica em matéria viva, inconformada, aberta por dentro. O romance revisita “As Aventuras de Huckleberry Finn”, de Mark Twain, não com reverência — mas com lâmina. Não para amputar, mas para expor. O narrador agora é Jim, o homem escravizado que, na obra original, era apenas companheiro de travessia — uma figura marginal, funcional, quase caricata. Aqui, ele ganha corpo, memória, intelecto, ironia — e sobretudo, voz. Mas não uma voz unívoca ou redentora: a que emerge destas páginas é tensa, inquieta, por vezes contraditória, sempre consciente de sua posição precária no mundo.

James
James, de Percival Everett (Todavia, 320 páginas, tradução de André Czarnobai)

Everett recusa a armadilha da correção histórica. Não se trata de consertar Twain, mas de tensioná-lo — reabrindo o que foi simplificado, omitido ou romantizado. A escravidão nos Estados Unidos, neste romance, não é moldura: é engrenagem ainda quente, com dentes quebrados e ruído de ferro. Jim — ou James, como ele se afirma — compreende essa máquina por dentro. Não porque a estudou, mas porque foi moído por ela. Ainda assim, o que se ergue dessas páginas não é um mártir: é um homem astuto, cindido entre estratégias de silêncio e lampejos de insubordinação, entre a consciência afiada e o papel que precisa simular para continuar vivo.

James se finge de menos do que é — e, às vezes, se exagera. Testa a linguagem que lhe foi negada. É um narrador dúbio por escolha. Sua ironia é letal e contida — voltada à hipocrisia branca, sim, mas também à expectativa de que a dor negra venha embalada em dignidade estética. Everett recusa esse pacto. Sua escrita é viva, exposta, abrasiva. A linguagem aqui tem textura: arde, escorrega, implode.

A estrutura do romance ecoa a tradição picaresca, mas com inflexão brutal. A travessia de Jim e Huck pelo Mississippi vira metáfora da ambiguidade moral de uma nação que nunca se reconciliou com sua origem escravocrata. Huck, nesse novo olhar, é tanto um menino envolto em ternura quanto um sintoma do privilégio mais perverso: o de poder ser inocente. Há compaixão — mas nunca condescendência. A amizade entre os dois pulsa, sim, mas sob a sombra de um contrato social que transforma o afeto em risco.

A violência, quando vem, não é espetacular. É rápida, íntima demais para voyeurismo. Um olho arrancado, um açoite, uma mão que hesita e desce. O horror aqui está no depois — no silêncio que sobra. Everett dosa o ritmo com precisão: não há gordura, mas tampouco urgência. Cada frase parece ter atravessado a garganta antes de alcançar a página.

Mas “James” não é apenas denúncia. É invenção. E, nesse sentido, ferozmente literário. Everett distorce sintaxes, desloca vozes, quebra fluxos — com a liberdade de quem sabe que a ficção é campo de batalha, não abrigo. Por vezes, lembra Morrison em “Amada”, ou Ellison em “Homem Invisível”. Há monólogos que beiram o delírio, diálogos cheios de silêncios, parágrafos que respiram — como se a prosa estivesse viva, inquieta, em estado de vigília.

A crítica à branquitude americana — institucional, cultural, moral — é constante e mordaz. Mas não se esgota nisso. O romance também pensa masculinidade, linguagem, fé e liberdade. Não há doutrina. James não se oferece como símbolo — mas como sujeito. Fraturado, astuto, às vezes cruel. É justamente sua recusa ao encaixe que torna esta narrativa tão urgente.

“James” é, enfim, uma cirurgia literária. Reabre feridas que pareciam cicatrizadas, só para mostrar que, sob a crosta, ainda pulsa o mesmo pus. Percival Everett não escreve para consolar, muito menos para agradar. Escreve — se escreve — como quem sabe que certas verdades só se dizem com a lâmina.

Carlos Willian Leite

Jornalista especializado em jornalismo cultural e enojornalismo, com foco na análise técnica de vinhos e na cobertura do mercado editorial e audiovisual, especialmente plataformas de streaming. É sócio da Eureka Comunicação, agência de gestão de crises e planejamento estratégico em redes sociais, e fundador da Bula Livros, dedicada à publicação de obras literárias contemporâneas e clássicas.