Cedo demais para ficar mal-humorado. Ainda assim, aborreci-me. Pulei cedo da cama de campanha, fui escovar os dentes, mas me deparei com a bisnaga de dentifrício espremida até o talo, a qual eu havia deixado sobre a Telefunken. Miseravelmente, eu me esquecera de passar na farmácia do Geraldino para comprar Kolynos. De toda forma, o velho farmacêutico recusava-se a me vender fiado ou a aceitar os meus cheques. Não o culpava pela falta de deferência. Além de estar desempregado há meses, a minha caligrafia era ininteligível. Nem médico, nem farmacêutico, nem o próprio Deus a decifravam.
O gato no padrão fechou curto, fazendo com que o aparelho 3 em 1 queimasse. Pus Roberto Carlos para tocar noutra vitrola. Lady Laura fazia-me lembrar mamãe. Se ela estivesse viva, haveria sim café e quitandas sobre a mesa. Despejei o penico pela janela. Lavei a boca com Carnaval. Limpei os ouvidos com o cotonete. As orelhas pareciam mais breadas do que uma lata de Colmeína. Besuntei a juba com Gumex. Vesti uma boca-de-sino. Passei violeta-de-genciana nas frieiras e Minâncora nas virilhas. Preguei Band-aid nos calcanhares e calcei o Kichute verde-oliva, tomando o cuidado de trançar os longos cadarços, perpassando-os três vezes sob o solado, de entremeio aos cravos. Examinei a Frigidaire, nem sei por quê, pois continuava entregue às moscas. Comi um nada. A azia me atazanava. Tomei uma colherada de sal Eno numa latinha de extrato de tomates Elefante. Destaquei e li a mensagem do dia na folhinha do Sagrado Coração de Jesus que falava sobre manter a fé em Deus e jamais esmorecer.
Quase esmorecendo, ganhei as ruas mais desalentado do que cego em suruba, pesando míseros quarenta e sete quilos. Dava pra tocar xilofone nas costelas. Se tivesse grana, tomava um litro de Biotônico Fontoura só pra me embriagar. Arranjei forças sei lá onde. Montei no selim da barra circular e circulei pelo bairro em busca de qualquer serviço que me rendesse alguns trocados: dar fundo em cisterna, roçar um lote, lavar carpetes, subir em andaime, limpar caixa de gordura. A fome era tanta que eu pedalava por inércia pelas ruas de terra tomadas por buracos e por cadelas no cio engatadas por caramelos vira-latas.
De repente, um alento. Perto de um orelhão, logo depois do lambe-lambe, cruzei por uma beldade com pernas de louça raspadas com gilete e que cheirava a Cashmere Bouquet. Dava pra sentir aquela fragrância a léguas de distância. Eu devia ter o faro de um caramelo. Ela mascava chiclete, tinha tranças nos cabelos amarradas com marias-chiquinhas, calçava meias soquete e caminhava em direção ao grupo escolar abraçada a dois volumes da Barsa. Diminuí a velocidade e arrisquei um gracejo: “Ah… Isso aí lá em casa…”. Mais tarde, concluí que teria tido alguma chance de sucesso se dissesse “Ah… Essa aí…” ao invés de “Ah… Isso aí…”. Nem todas as garotas gostavam de ser tratadas como objeto. Enfim, sem sequer se virar, o brotinho, que mais parecia retirada de um baile de debutantes, levantou o braço, com o dedo médio armado em riste, atravancando de vez aquela modorrenta manhã de segunda-feira.
Eu odiava segundas-feiras. Odiava sentir fome também. Apesar da desnutrição gritante, eu gastava as poucas energias que ainda me restavam em siriricas diárias, dedicadas às Garotas do Calendário que eu afanara de uma oficina mecânica. Precisava de uma matinê no dancing, de arrumar uma namorada bonita, limpa, inteligente e macia. Mais do que dançar de rosto colado com uma gatinha, precisava arrumar um emprego. Lanterninha de cinema. Cobrador de ônibus. Telefonista. Projetor de slides. Operador de mimeógrafo. Instrutor de datilografia. Entregador de leite. Linotipista. Eu topava qualquer serviço que resgatasse um mínimo de dignidade. Um homem que não tinha dinheiro sequer para comprar uma bala Apache não valia lá grandes coisas.
No entanto, ainda existiam pessoas de alma boa no mundo. Um desconhecido presenteou-me com um Arizona. A fumaça deixava os meus olhos vermelhos como mercúrio cromo. Senti um tremor na cintura. Pensei que fosse o pager vibrando, mas era o estômago que roncava. Minha vida dava um livro. Um livro da Cassandra Rios. Desci da magrela. Cismei de futricar num monte de entulhos em busca de algo que tivesse algum valor gregário para ser vendido. Precisava de grana. Não ia pedir, muito menos, roubar alguém. Usando um rodo quebrado, vasculhei os resíduos. Uma caixa de disquetes. Uma roda de fusca. Uma finca. Uma fita cassete. Uma lamparina. Uma Playboy com a Betty Faria na capa. Uma embalagem de cigarrinhos de chocolate ao leite. Uma bobina. Um Modess usado. Um retroprojetor seminovo. Uma bola de cobertão rasgada. Uma seringa de vidro. Um velocípede faltando uma roda. Uma lata de leite Ninho. Tacos de pinho. Um pôster do Flamengo, Campeão Mundial de 1981. Parte de um carrinho de rolimã. A carcaça de um bichano. A abreugrafia de um tal Raimundo Nonato.
Abri o sapeca-negrinho sobre a calçada e comecei a juntar o meu pequeno tesouro. Tinha a esperança de vender as quinquilharias no ferro-velho do Devair. Pedalei por meia hora, sei lá usando que força. Encontrei o depósito fechado, muito tumulto na porta e homens vestidos com indumentárias brancas que mais pareciam uniforme de astronauta. A polícia tinha feito um cordão de isolamento e ameaçava bater no povo. Perguntei para um transviado que carregava um poodle cor-de-rosa no colo, o que tinha sucedido. Esbanjando frescura, o hippie efeminado respondeu que o Devair tinha aberto a marretadas um equipamento subtraído de um hospital abandonado no centro da capital. Parecia que a geringonça, chamada cápsula de césio, era bastante perigosa, pois, a despeito de possuir um conteúdo colorido, reluzente e encantador, estava derretendo a pele das pessoas até os ossos.
O dia estava perdido. Abandonei as sucatas na calçada e vazei. Só me restava render uma homenagem a Betty Faria, assim que chegasse em casa.