Pepe Mujica: Voz de uma América soberana, uruguaio deixa legado de defesa dos mais vulneráveis e enganos monumentais

Pepe Mujica: Voz de uma América soberana, uruguaio deixa legado de defesa dos mais vulneráveis e enganos monumentais

José Alberto “Pepe” Mujica Cordano (1935-2025) foi um sonhador antes de qualquer outra coisa. Mujica tornou-se conhecido pela maneira algo romântica como via o expediente político — compreensão que, na verdade, deveria ser a regra. Filho de um pai agricultor de ascendência basca e mãe de origem italiana, desde cedo Mujica sensibilizou-se às tantas desigualdades de um capitalismo ainda muito longe de demonstrar interesse mesmo que meramente superficial por direitos básicos de uma classe trabalhadora que gerava riqueza e permanecia miserável e escravizada. Nos anos 1960, movido pelos ventos da justiça social que balançavam o mundo, tornou-se um militante de esquerda e um dos membros mais ativos dos Tupamaros, grupo de guerrilha urbana que respondeu com saques de armazéns e roubos a bancos, cujo espólio distribuíam entre os mais humildes. Em agosto de 1972, Mujica e parceiros como o dramaturgo, poeta e jornalista Mauricio Rosencof, o Ruso, prestes a completar 92 anos; e o jornalista e escritor Eleutério Fernández Huidobro, o Ñato (1942-2016), ministro da Defesa durante o futuro governo de Mujica, entre 1º de março de 2010 e 1º de março de 2015. Eles só seriam libertados em março de 1985, depois de 4.300 dias no xadrez.

Quando do lançamento de “A Noite de 12 Anos” (2018), de Álvaro Brechner, Mujica, político como nunca, relembrou os muitos opróbrios a que fora submetido pelos militares enquanto esteve preso: acabara perdendo os dentes por causa das surras — e certamente a imundície em que viviam, ele, Ruso e Ñato, colaborou para tal —; tivera de tomar a própria urina para não morrer de sede, comera sabão para tapear a fome; e servira de alvo a simulações de fuzilamento, uma das quais resultou numa perfuração a bala de verdade. Em seu filme, Brechner empenha-se em mostrar a dureza da vida de Mujica e seus companheiros no cárcere, lançando de cenas que deixam muito claro o porquê de regimes ditatoriais conseguirem alongar-se por tanto tempo. Os prisioneiros só tomavam banho quando encontravam-se com seus parentes, ou seja, quase nunca, e mais adiante, uma sequência de patética escatologia pega um banheiro enchendo-se de autoridades a fim de resolver se Ñato poderia ou não ser poupado das algemas enquanto aliviava o peso das tripas. Episódios como este decerto ou moldam o caráter férreo de um indivíduo, ou fazem-no um degenerado de uma vez para sempre. Estoico convicto e ateu praticante, Mujica ficou no meio-termo, elaborando seu amor pela vida simples, agradecendo a algum deus ter podido, durante sua temporada na prisão de Punta Carretas, de quando em quando dispor de um colchão velho para repousar o corpo trucidado por horas de espancamento, pau-de-arara, choques elétricos, arrematando, com brilhantismo que aquele que não é feliz no pouco não o será no muito. Ele foi feliz até o último minuto.

Mujica certamente ajudou o Uruguai a tornar-se uma sociedade mais inclusiva, apelando ao pragmatismo para lidar com assuntos espinhosos a exemplo da legalização do aborto e o estabelecimento de regras para o consumo de maconha, acenos populistas que entram de contrabando em pacotes de mudanças urgentes feito a união civil entre pessoas do mesmo sexo e de penas mais rigorosas para políticos corruptos. A utopia de um mundo menos perverso levou o velho Tupamaro a sonhos que podem vir a transformar-se em pesadelos brevemente, mas que louve-se sua fibra moral, seu humanismo, sua vontade de provar que o poder é mesmo um servo do cidadão comum. Sua morte, ainda que chegue-lhe em boa hora, é digna de uma lágrima furtiva de quem deseja um mundo um pouco menos caos e menos cão.

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.