Este poema nasceu da queda. Não de uma só, nem de uma grandiosa — mas de várias, sucessivas, discretas, daquelas que não fazem barulho nem pedem socorro. Quedas pequenas, mas fundas. De fé, de nome, de lugar, de voz. Às vezes, ninguém nota. Às vezes, nem quem cai se dá conta. Só mais tarde, quando o corpo volta a caber, percebe-se que algo o sustentou no escuro. Este poema fala disso. Das vinte vezes em que você caiu — ou poderia ter caído — e havia ali, mesmo que em silêncio, uma presença anterior à palavra: tua mãe. Não aquela das frases prontas ou das flores do domingo. Mas a mãe que permaneceu quando tudo o mais já havia partido. A que escutou antes que você dissesse. A que guardou um nome que você mesmo esqueceu. A que não se moveu, nem quando o chão saiu. Cada estrofe deste poema é um ponto de vigília. Um instante onde o tempo se dobra e, em vez do fim, alguém ainda está. Não é um consolo. Não é uma exaltação. É um reconhecimento: tua mãe estava ali. Está. Mesmo sem forma. Mesmo sem nome. Mesmo ausente. Como a linha no avesso do bordado. Como o telhado que continua firme mesmo quando não olhamos pra cima. Talvez tudo o que você precise seja isso: lembrar que a queda não foi absoluta. Que alguma coisa — ou alguém — segurou. E que essa permanência, invisível como só o amor sabe ser, ainda respira entre os versos.
Vinte formas de cair — e uma só de permanecer: tua mãe
1
Se a noite for sem estrela
e o medo acender seus gritos,
tua mãe será sentinela
nos telhados infinitos.
2
Se a escuridão se alongar
por dentro da tua estrada,
tua mãe será o lugar
onde a luz ainda aguarda.
3
Se tua luz se apagar
sem ninguém para acender,
tua mãe será o lugar
onde o escuro vai ceder.
4
Se a queda não tiver som
e ninguém souber de ti,
tua mãe será o dom
de te ouvir quando cair.
5
Se a infância cair em sombra
e os brinquedos se calarem,
tua mãe será a alfombra
onde os sonhos se deitarem.
6
Se teu corpo for paisagem
que o tempo deixou secar,
tua mãe será a miragem
que insiste em te regar.
7
Se fores só ruína
onde outrora havia chão,
tua mãe será a esquina
onde o afeto faz perdão.
8
Se teus sonhos forem cacos
na beira de um chão desfeito,
tua mãe virá sem pactos
refazer o que há em teu peito.
9
Se o toque for esquecido
e o afeto virar aço,
tua mãe será o tecido
que reconstrói o abraço.
10
Se a ferida for segredo
que ninguém mais quer ouvir,
tua mãe será o enredo
do silêncio a te florir.
11
Se não houver mais abrigo
nem um nome pra chamar,
tua mãe será contigo
onde o verbo não chegar.
12
Se a ausência for jardim
de onde só nascem espinhos,
tua mãe será o jasmim
que floresce nos caminhos.
13
Se a solidão for chama
a queimar sem direção,
tua mãe será a cama
onde adormece o perdão.
14
Se o mundo for sentença
proferida sem razão,
tua mãe será a clemência
antes da condenação.
15
Mãe é linha que se esconde
no avesso do bordado.
É quem costura o horizonte
sem pedir ser nomeado.
16
Se tudo for despedida
sem ninguém para ficar,
tua mãe será a vida
que insiste em não cessar.
17
Se a estrada for tão ausente
que não reste mais lugar,
tua mãe será a vertente
do que insiste em caminhar.
18
Se o tempo não for abrigo
e o corpo não for cais,
tua mãe será contigo
onde ninguém fica mais.
19
Se o mundo negar teus traços
e a dor for teu apelido,
tua mãe será os compassos
do que nunca foi perdido.
20
Se o tempo enfim se dobrar
e o mundo for só resquício,
tua mãe será o lugar
antes mesmo do início.