Poucas narrativas policiais se arriscam a romper com o pacto tácito entre suspense e apaziguamento. “A Filha do General”, dirigido por Simon West, não apenas desafia essa tradição — como a desmonta peça por peça, expondo a engrenagem moralmente corroída sob o verniz da disciplina militar. O que poderia ser mais um whodunit ambientado em solo americano assume contornos inquietantes ao lidar com temas espinhosos como abuso sexual institucionalizado, fidelidade a hierarquias que sufocam a verdade e a devastação íntima que se esconde sob os galões de honra.
O ponto de partida — o estupro seguido de morte de uma oficial dentro de uma base do Exército dos Estados Unidos — seria, em mãos convencionais, o estopim para uma investigação linear e redentora. Mas aqui, a lógica da apuração esbarra em muros simbólicos que não cedem ao raciocínio dedutivo. A estrutura de thriller é apenas o invólucro de uma crítica corrosiva: o filme revira não só a cena do crime, mas os alicerces de uma instituição que pune desvios menos por moralidade do que por conveniência estratégica.
John Travolta encarna o investigador Paul Brenner, figura contraditória que transita entre o cinismo e a obstinação moral. Sua entrada em cena, marcada por um sotaque sulista performático e maneirismos que beiram o farsesco, é rapidamente reconfigurada à medida que o personagem mergulha na rede de mentiras que permeia a base militar. O excesso estilístico inicial serve como distração — uma armadura teatral que aos poucos é desmontada, revelando um sujeito em constante tensão entre o dever funcional e a perplexidade ética.
Ao seu lado, Madeleine Stowe interpreta Sara Sunhill com contenção e inteligência, evitando a caricatura da femme forte que Hollywood tanto idolatra quanto esvazia. Ela representa o olhar que resiste — que não aceita explicações convenientes e percebe, talvez antes do próprio Brenner, que não se investiga apenas um crime, mas uma estrutura inteira que se recusa a reconhecer suas próprias vítimas. A química entre os dois foge da previsibilidade romântica e insere-se num campo mais árido: o de duas pessoas que compartilham um histórico emocional mal resolvido e, ao mesmo tempo, uma lucidez desconfortável diante do que estão prestes a descobrir.
Mas é na figura silenciada de Elizabeth Campbell que o filme ancora sua carga mais devastadora. Leslie Stefanson constrói a personagem como uma presença ausente que ainda domina cada cena. Não há esforço para tornar Elizabeth “simpática” ou “reparável” aos olhos do espectador; sua dor é mais insinuada do que exibida, mais sugerida por cortes e olhares do que por discursos. O filme recusa o sentimentalismo barato ao tratar de um corpo violentado, preferindo encarar o espectador com a frieza de um sistema que, para preservar sua estabilidade, engole biografias inteiras.
James Cromwell e James Woods, como o general pai e o mentor da vítima, respectivamente, funcionam como eixos opostos de uma mesma engrenagem: um representa a negação conveniente, o outro, a manipulação como instinto de sobrevivência institucional. Ambos entregam atuações carregadas de ambiguidade, sugerindo que nem sempre o vilão veste a farda errada. É nos diálogos entre Woods e Travolta que o filme atinge seu ápice verbal — ali, cada frase parece esconder uma armadilha semântica, cada resposta uma provocação velada, como se a verdade só pudesse emergir em meio a duelos de retórica afiada.
A ambientação contribui decisivamente para o desconforto crescente. A direção de fotografia de Peter Menzies Jr. evita os exageros típicos do gênero, preferindo planos longos e silêncios densos que transformam a base militar em uma prisão sem grades. Nada soa excessivo: a violência é pontual, os movimentos de câmera são econômicos, e a trilha sonora, quando aparece, atua como acento e não como sublinhado. O filme sabe que sua força está na sugestão — e é justamente essa parcimônia que faz com que cada revelação pese mais.
A acusação mais recorrente feita ao filme — a de pintar as Forças Armadas com cores demasiadamente sombrias — perde força diante do que se vê em cena: não se trata de difamar, mas de interrogar. E o que se interroga não é apenas uma instituição, mas um pacto coletivo que escolhe quem deve ser ouvido e quem deve ser apagado. Ao se debruçar sobre a cultura do silêncio, o longa arranha o verniz da meritocracia militar e confronta, com brutalidade, o custo humano da obediência cega.
Sem abrir mão da tensão narrativa, o filme se permite cavar mais fundo. O feminismo aqui não é declarado — é exercido na forma como recusa estereótipos, na maneira como expõe a misoginia como parte estrutural de uma engrenagem aparentemente neutra. Os diálogos entre os investigadores não servem apenas à investigação, mas à dissecação de um ambiente onde o poder se blinda com insígnias e onde o corpo feminino se transforma em campo de disputa, punição e silenciamento.
Não há catarse no final — e essa escolha é fundamental. O espectador não recebe alívio, apenas constatação. O crime é desvendado, mas a estrutura que o permitiu permanece de pé, intacta. A ordem é restabelecida apenas na aparência, como um cenário cuidadosamente recomposto após um terremoto. Resta ao público a sensação amarga de que, ali, o verdadeiro mistério não está no “quem fez”, mas no “por que todos fingiram que não sabiam”.
“A Filha do General” é, assim, um thriller que opera por dissonância: oferece os elementos do gênero, mas torce cada um deles para além da previsibilidade. Sua força não está no choque, mas na persistência incômoda com que levanta questões que seguem, em muitos espaços, sendo varridas para debaixo do tapete da honra. Não se trata de encontrar culpados, mas de confrontar cumplicidades. E isso, num mundo habituado a tramas com finais reconfortantes, talvez seja sua acusação mais perturbadora.
★★★★★★★★★★