Meses depois de chegar à Polônia, o sueco Magnus von Horn viveu a experiência que mudaria sua carreira. Um assalto violento e desproporcional contra ele despertou no cineasta a vontade de entender o que move seres humanos a levar a cabo a máxima de Hobbes e atacar seu semelhante, ainda que sua sobrevivência dependa do gesto. “A Garota da Agulha” fala de violências que se perpetuaram no tempo sem que escandalizassem ninguém, começando pela miséria, oculta num cortiço da Copenhague de 1919.
Operária numa tecelagem que fabrica uniformes para os alemães até o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), Karoline encarna as mazelas do capitalismo, numa ingenuidade que acaba por perdê-la. Atento a essa premissa, Von Horn elabora uma controversa discussão acerca de um suposto direito das mulheres, que culmina numa implacável engrenagem para exterminar recém-nascidos pobres. A fictícia Karoline Nielsen é a protagonista de “A Garota da Agulha”, indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional em 2025, mas a história verídica de Dagmar Overbye (1887-1929), a mulher desinteressada que se propunha a ajudar desvalidas mães solo prometendo-lhes um lar para os filhos enjeitados e revelou-se uma das assassinas em série mais persuasivas e malévolas da sóbria crônica policial da Dinamarca, rouba a cena.
Karoline está prestes a ser despejada de seu singelo apartamento depois de catorze semanas sem pagar o aluguel. Ela, claro, não tem para onde ir, mas mantém as esperanças graças ao emprego na tecelagem, e um acontecimento inesperado pode transformar sua dura realidade. A tecelã passa a ser cortejada pelo patrão, Jørgen, os dois parecem apaixonados e ela fica grávida. O diretor e a corroteirista Line Langebek Knudsen imprimem à gravidez de Karoline contornos enganosos, dando a impressão de que os dois irão mesmo se acertar e viver felizes para sempre.
Todavia, um encontro com a mãe de Jørgen basta para que suas ilusões venham abaixo com estrépito, e uma cena na trevosa mansão da família do industrial é a primeira das muitas sequências de horror a acompanhar a personagem central, com Vic Carmen Sonne, Joachim Fjelstrup e Benedikte Hansen afinados. Ouvem-se os ecos do Claude Chabrol de “Um Assunto de Mulheres” (1988), e à medida que a barriga de Karoline desponta e seu desespero cresce, intui-se a saída pela qual ela irá optar, depois de tentar espetar o feto com uma agulha de crochê numa casa de banho, momento a que o título faz alusão. A única a vir em seu socorro é Dagmar, que Karoline acredita mesmo ser uma alma caridosa — malgrado cobre pelo suposto encaminhamento à adoção —, e o filme passa a nutrir-se do relacionamento ambíguo entre as duas, até que Dagmar seja desmascarada e presa.
Trine Dyrholm confere a Dagmar a aura de fera ferida que antagonistas como essa pedem, crescendo na trama conforme a personagem de Sonne encanta-se com sua estampa de mulher austera e solidária, convicta de que ela lhe faz mesmo um grande favor. Falsas aparências também são um tema relevante aqui, e Peter, o marido vítima do adultério de Karoline interpretado por Besir Zeciri, que volta desfigurado da guerra e arranja emprego como aberração num circo, é outros dos tipos secundários a fazer de “A Garota da Agulha” uma história perfurante, capaz de fazer um grande (e bem-vindo) estrago em almas excessivamente crédulas.
★★★★★★★★★★