Filmes de guerra como “O Soldado que Não Existiu” têm a peculiar capacidade de funcionar como espelhos que refletem tanto os valores mais elevados quanto os impulsos mais sombrios da natureza humana. Eles frequentemente exploram a coragem, a honra e o sacrifício, enquanto também expõem os horrores e absurdos da guerra. Esses elementos criam espaço para interpretações político-ideológicas que, dependendo da abordagem, podem oscilar entre o proselitismo descarado e uma narrativa filosoficamente sofisticada. As obras que alcançam relevância histórica são aquelas que conseguem, de maneira brilhante, equilibrar essas dimensões, conferindo-lhes profundidade e complexidade.
Longe de romantizar a guerra, “O Soldado que Não Existiu” rejeita a “beleza” das batalhas, focando na engenhosidade e na resiliência humana. Lançado no Reino Unido em 15 de abril de 2022, sob a direção de John Madden, o filme reconstitui detalhadamente um audacioso plano de contraespionagem que desempenhou papel fundamental na Segunda Guerra Mundial. A trama aborda a Operação Mincemeat, uma estratégia tão engenhosa quanto improvável, concebida para enganar os nazistas sobre os movimentos dos Aliados na Europa. Com um título que pode parecer de gosto duvidoso, o filme compensa esse detalhe com uma execução impecável e um elenco excepcional, apresentando o que há de melhor no cinema britânico.
O roteiro, adaptado por Michelle Ashford a partir do livro de Ben Macintyre, não apenas detalha os eventos históricos, mas também os humaniza. A narrativa acompanha Ewen Montagu (Colin Firth) e Charles Cholmondeley (Matthew Macfadyen), oficiais da Inteligência Naval britânica encarregados de executar a missão. A proposta consistia em usar o corpo de um homem morto como mensageiro fictício para desinformar o inimigo. Essa ideia, por mais absurda que pareça, foi habilmente implementada com o objetivo de desviar a atenção dos nazistas da Sicília para a Grécia, permitindo que os Aliados avançassem estrategicamente.
A complexidade psicológica de Montagu é um dos pontos altos do filme. Advogado respeitado, ele se vê em um momento de transição pessoal e profissional. Afastado de sua família devido aos perigos da guerra, Montagu estabelece uma relação ambígua com Jean Leslie (Kelly Macdonald), uma funcionária dedicada do MI5. Essa dinâmica adiciona camadas à narrativa, explorando os efeitos do conflito em relações interpessoais e destacando o custo emocional da missão.
O filme também apresenta Ian Fleming (Johnny Flynn) como um jovem burocrata da Inteligência Naval, em uma alusão intrigante à sua futura carreira como criador de James Bond. Esse detalhe meticulosamente inserido não apenas enriquece a narrativa, mas também oferece uma conexão entre a ficção e a realidade histórica. A atuação de Flynn confere ao personagem um charme discreto, equilibrando o tom sério do filme com momentos de leveza e inspiração criativa.
Outro destaque é a atuação de Simon Russell Beale como Winston Churchill, retratado como um líder visionário que, mesmo diante de uma situação desesperadora, demonstra pragmatismo e astúcia. Churchill confia na habilidade de sua equipe para transformar uma ideia improvável em um plano viável. Essa fé inabalável no potencial humano é um dos temas centrais do filme.
A produção de Madden é um exemplo magistral de como equilibrar autenticidade histórica e narrativa cinematográfica. Desde os cenários meticulosamente recriados até os diálogos cuidadosamente elaborados, cada elemento é projetado para transportar o espectador ao coração de um dos momentos mais cruciais da Segunda Guerra Mundial. A inclusão de personagens secundários, como Hester Leggett (Penelope Wilton), secretária experiente do MI5, acrescenta um toque humano à trama, permitindo uma visão mais ampla das múltiplas camadas da operação.
“O Soldado que Não Existiu” não é apenas uma lição de história apresentada com elegância; é também uma reflexão sobre a criatividade e a coragem necessárias em tempos de crise. O filme demonstra como a combinação de inteligência, determinação e um pouco de ousadia pode mudar o curso da história. Ao final, o espectador não apenas compreende a relevância da Operação Mincemeat, mas também sai inspirado pela capacidade humana de encontrar soluções brilhantes para desafios aparentemente insuperáveis.
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