Poucas vezes a história humana encontra nos holofotes da arte uma reflexão que repara lacunas de compreensão ou equívocos consolidados pela narrativa dominante. “Tempo de Glória”, dirigido por Edward Zwick, é uma dessas raras ocasiões. O filme se debruça sobre um episódio obscuro da Guerra Civil Americana (1861–1865), marcado não apenas pelo conflito em torno do sistema escravocrata, mas também pela participação ativa de soldados negros, um tema negligenciado até mesmo entre os próprios estadunidenses. Lançado em 1989, a obra transcende seu tempo ao lançar luz sobre os sacrifícios de homens que lutaram pela abolição da escravidão e pela fundação de uma luta mais ampla e duradoura: a busca por igualdade e justiça social, que continua a ecoar nas demandas contemporâneas.
O diretor abre sua narrativa com um mergulho visual impactante. A câmera passeia pelos austeros alojamentos em Antietam Creek, Maryland, transportando o espectador para o ambiente sombrio e visceral da guerra. A escolha por planos amplos cria uma sensação de proximidade que vai além do visual, quase como se o público pudesse sentir o frio úmido da madrugada nos campos de batalha. Contudo, o roteiro de Kevin Jarre segue um caminho controverso ao destacar o papel de um protagonista branco, o coronel Robert Gould Shaw, interpretado com vigor por Matthew Broderick. Shaw, à frente do 54º Regimento, composto inteiramente por soldados negros, encarna o heroísmo clássico associado aos líderes militares da época. Sua figura é exaltada como um símbolo de coragem e idealismo, traçando um paralelo inevitável com Abraham Lincoln, cuja determinação pela emancipação dos escravos é um pano de fundo constante.
No entanto, o foco desproporcional em Shaw não passa incólume às críticas. Por mais que sua liderança seja historicamente relevante, a centralidade de sua narrativa deixa em segundo plano figuras como Thomas Searles, interpretado magistralmente por Andre Braugher. Searles, uma representação do intelectual negro politizado e culto, poderia ter sido explorado de maneira mais robusta, mas acaba relegado a um papel de transição. Sua presença, embora marcante, serve mais como ponte para a construção de outros personagens, como Frederick Douglass, um gigante histórico e inspiração para o movimento de direitos civis nos Estados Unidos.
Entre os destaques do elenco, Denzel Washington brilha intensamente como Trip, um ex-escravo cujo temperamento explosivo e complexo oferece uma profundidade singular à trama. Sua performance, ainda que ofuscada pelo tempo limitado em cena, é um ponto alto, especialmente em momentos de tensão entre o segundo e o terceiro ato. Washington, que recebeu o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante, encarna com intensidade um homem moldado pela dor e pela revolta, elevando o impacto emocional do filme. Morgan Freeman também entrega uma atuação sólida como John Rawlins, uma figura quase paternal que guia os jovens soldados em meio à brutalidade do conflito, mas seu papel, ainda que consistente, carece da mesma força dramática.
O ápice narrativo é, sem dúvida, a fatídica batalha de 18 de julho de 1863, onde o 54º Regimento é dizimado em uma demonstração devastadora de sacrifício e bravura. Essa derrota, que parecia definitiva, tornou-se um marco histórico, sinalizando o início do fim da escravidão nos Estados Unidos. A tragédia do 54º reflete, paradoxalmente, a resiliência de homens que acreditaram em um ideal maior, mesmo diante da quase certa aniquilação.
Zwick entrega uma obra que, apesar de algumas escolhas narrativas questionáveis, mantém-se relevante e pungente. “Tempo de Glória” não é apenas um tributo aos soldados do 54º Regimento, mas também um lembrete contundente de que a luta pela liberdade e pela igualdade é construída sobre os ombros de muitos, cujas histórias, frequentemente esquecidas, são o alicerce de qualquer progresso significativo.
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