Influenciado por Bergman e baseado na teoria do salto de fé de Kierkegaard, novo filme da Netflix vale cada milésimo de segundo do seu tempo Divulgação / Netflix

Influenciado por Bergman e baseado na teoria do salto de fé de Kierkegaard, novo filme da Netflix vale cada milésimo de segundo do seu tempo

O casamento é a instituição falida mais invejada da história da humanidade. Dois indivíduos completamente diversos um do outro, dois rios paralelos que em algum momento se cruzam e, se tudo correr bem, vão desaguar no oceano plácido da Eternidade. Mas e se as coisas não forem exatamente assim (e quase nunca o são)? É justo essa a magia do amor. Vinicius de Moraes (1913-1980), gênio e um especialista no assunto, disse muito bem em seu “Soneto de Fidelidade” (1946) que o amor, em sendo chama, não pode ser imortal, mas pode ser infinito enquanto os amantes se amarem. Pode ser redundante, óbvio até, mas o amor é mesmo ridículo, como alega o poeta lusitano Fernando Pessoa (1888-1935), outra sumidade no assunto.

A picardia cínica de Machado de Assis (1839-1908), contudo, aplica-se em algum grau a Stella e Gustav, os protagonistas de “O Que Tiver Que Ser”, a comovente dramédia da sueca Josephine Bornebusch, que emula o Bruxo do Cosme Velho ao querer definir o amor e dissociá-lo de sua prova factual mais evidente — ao menos do ponto de vista sociojurídico. Para Bornebusch, uma humilde discípula de Ingmar Bergman (1918-2007), o amor foi mesmo feito por Deus, mas o casamento é uma invenção do diabo, que tomou a cabeça do homem e o fez confundir este com o primeiro. Até que a providencial morte separe quem Ele uniu.

No mundo ideal, famílias só começariam depois de observados alguns passos elementares. Duas pessoas solteiras, adultas, independentes e desarmadas se conheceriam, passariam dias em conversas tão ridículas quanto imprescindíveis, trocariam beijos, carícias, firmariam compromisso e, só então, pensariam em filhos — que talvez não viessem. Na vida como ela é, entretanto, o estado intermedeia o encontro daqueles que, por uma ou outra razão, cumpridas ou não essas etapas, não alcançam o sonho da maternidade e da paternidade, e, finalmente, um núcleo familiar nutrido por correntes de genuíno afeto, acima até mesmo do onipresente sangue, estaria pronto. Stella não é a mãe perfeita, não é a esposa perfeita, mas tenta ser — e este é seu mal.

Quando Gustav, um terapeuta de casais que ganha a vida ouvindo as reclamações conjugais alheias, lhe pede o divórcio, parece que o mundo desaba de vez na cabeça da pobre Stella, que guardava uma notícia bombástica para comunicar a ele e aos filhos, Anna e Manne. O roteiro, da própria diretora, fixa-se nas agruras dessa mulher oprimida por todos, mas principalmente por si mesma, e é também Bornebusch quem encarna Stella, com sensibilidade e sem concessões à pieguice. Como Bergman, mas como ela mesma.


Filme: O Que Tiver Que Ser
Direção: Josephine Bornebusch
Ano: 2024
Gêneros: Drama/Comédia
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.