Antônio Cícero: um pedaço da poesia brasileira morreu

Antônio Cícero: um pedaço da poesia brasileira morreu

Antônio Cícero, que nos deixou hoje, foi um dos grandes nomes da cultura brasileira, e sua partida representa uma perda incalculável para o país. Nascido no Rio de Janeiro em 1945, Cícero despontou como poeta, letrista e ensaísta na década de 1970, construindo uma obra que transcendeu as fronteiras entre literatura, música e filosofia. Sua trajetória é marcada não apenas pela profundidade de sua produção, mas também pela colaboração artística com sua irmã, a cantora Marina Lima, com quem escreveu sucessos como “Fullgás”, “À Francesa” e “Acontecimentos”, que marcaram a MPB e continuam reverberando na memória musical do Brasil.

Criado em um ambiente familiar intelectualizado, com pais que estimulavam o pensamento crítico e a expressão artística, Cícero se destacou desde cedo pelo talento com as palavras. Graduou-se em Filosofia pela University College London, o que moldou sua visão estética e deu à sua obra uma profundidade rara. Antônio Cícero conciliou o erudito com o popular, sendo uma ponte entre a alta cultura e a vida cotidiana, articulando reflexões filosóficas complexas com a simplicidade da canção popular. Sua influência se estendeu por múltiplas camadas da vida cultural do país, especialmente por meio de suas colaborações musicais e seus densos ensaios sobre arte, estética e a condição humana.

Seus ensaios, sempre aguardados, destacavam-se por uma linguagem elegante e reflexiva, abordando temas universais como a morte, o amor, a beleza e o tempo. Em livros como “Finalidades Sem Fim” e “O Mundo Desde o Fim”, Cícero propunha uma filosofia da estética que refletia a modernidade de um país em constante transição, mas que, ao mesmo tempo, ainda lidava com dilemas existenciais arraigados.

Embora a poesia e a filosofia fossem o coração de sua obra, foi na música que Antônio Cícero encontrou uma maneira única de tocar o grande público. Suas letras, interpretadas por sua irmã Marina Lima e por outros grandes nomes da música brasileira, tornaram-se a trilha sonora de diversas gerações. Em canções como “Pra começar” e “Acontecimentos”, Cícero fundiu o lirismo poético com uma profundidade filosófica, criando na MPB um espaço para a exploração de temas existenciais de maneira acessível e popular.

O sucesso de suas canções não ofuscou sua carreira como poeta. Muito pelo contrário, sua entrada para a Academia Brasileira de Letras, em 2017, consolidou Antônio Cícero como uma das grandes vozes da poesia contemporânea no Brasil. Ao ser eleito para a ABL, ele reforçou o elo entre música, poesia e pensamento filosófico, mostrando que essas formas de expressão podem coexistir harmoniosamente.

Cícero foi uma voz singular em um tempo de fragmentação cultural e social. Seu pensamento estava calcado na ideia de que a arte e a estética têm um papel central na vida humana, especialmente em tempos de incerteza. Ele defendia que a poesia não deveria se limitar aos livros, mas sim fazer parte da vida cotidiana, como em suas letras, que se transformaram em canções imortais. Sua visão de que a cultura deveria ser acessível e envolvente marcou profundamente a maneira como o Brasil pensou e consumiu arte nas últimas décadas.

Além da música e da poesia, Antônio Cícero se destacou pela postura intelectual. Sempre envolvido nos debates estéticos e filosóficos, era um pensador comprometido com as questões da cultura brasileira e mundial. Seu pensamento alinhava-se a uma tradição filosófica que questionava o papel da arte em um mundo que, cada vez mais, caminha para a banalização da experiência humana. Cícero foi um dos últimos intelectuais brasileiros a propor, com clareza, um diálogo entre a arte e a vida, acreditando que uma não existia sem a outra.

Embora sua perda seja imensurável, seu legado permanece. Suas canções ainda são ouvidas e cantadas, seus poemas ainda são lidos e suas ideias sobre arte e estética continuam a inspirar novos artistas e pensadores. Cícero é um daqueles raros artistas que conseguem tocar tanto o público amplo quanto a crítica especializada, transitando com maestria entre diferentes campos de expressão artística e intelectual. Ele viveu plenamente sua arte, deixando uma marca profunda na cultura brasileira.

Ao olhar para sua vasta produção, percebe-se uma impressionante coerência entre sua obra e sua vida. O amor pelas palavras, a busca pela beleza e a reflexão filosófica sobre a existência são temas recorrentes em tudo o que fez. Ele foi um verdadeiro humanista, alguém que acreditava na capacidade transformadora da arte, não por meio de grandes gestos, mas por pequenas epifanias, momentos de beleza que iluminam o cotidiano.

Cícero soube usar a fragilidade e a fugacidade da vida como matéria-prima para suas criações. Seu trabalho nos convida a refletir sobre o tempo, o efêmero, mas também sobre o que permanece. O que fica de sua obra é a certeza de que a arte pode resistir ao tempo, de que há algo eterno em tudo o que escreveu. Suas palavras, suas canções e suas reflexões continuam ecoando em nossa cultura, eternizando Antônio Cícero como um dos grandes nomes da arte brasileira.

Sua partida deixa uma lacuna, mas também uma obra que será redescoberta por gerações futuras. Antônio Cícero não foi apenas um poeta ou um filósofo; ele foi, acima de tudo, um tradutor da alma brasileira, um observador atento das mudanças e permanências que moldam a nossa cultura. Por isso, seu nome estará para sempre gravado na história das artes do Brasil, um país que, em suas palavras e canções, sempre encontrou um espelho para se ver, se entender e, sobretudo, se sentir.

A carta de despedida

Queridos amigos,

Encontro-me na Suíça, prestes a praticar eutanásia. O que ocorre é que minha vida se tornou insuportável. Estou sofrendo de Alzheimer.

Assim, não me lembro sequer de algumas coisas que ocorreram não apenas no passado remoto, mas mesmo de coisas que ocorreram ontem.

Exceto os amigos mais íntimos, como vocês, não mais reconheço muitas pessoas que encontro na rua e com as quais já convivi.

Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia.

Não consigo me concentrar nem mesmo para ler, que era a coisa de que eu mais gostava no mundo.

Apesar de tudo isso, ainda estou lúcido bastante para reconhecer minha terrível situação.

A convivência com vocês, meus amigos, era uma das coisas — senão a coisa — mais importante da minha vida. Hoje, do jeito em que me encontro, fico até com vergonha de reencontrá-los.

Pois bem, como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo.

Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade.

Eu os amo muito e lhes envio muitos beijos e abraços!

Antônio

Um poema

O fim da vida

Conhece da humana lida
a sorte:

o único fim da vida
é a morte
e não há, depois da morte,
mais nada.
Eis o que torna esta vida
sagrada:

ela é tudo e o resto, nada.

Carlos Augusto Silva

É professor de Literatura e História da Arte. Licenciado em Letras e História, é bacharel em Literatura e Especialista em Estética e História da Arte. Mestre em Estudos Literários, cursa o doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP. É autor dos livros “Dicionário Proust”, “Proust e a História” e “Opção Crítica”.