Comédia dramática na Netflix que tem 99% de aprovação no Rotten Tomates Merie Wallace / A24

Comédia dramática na Netflix que tem 99% de aprovação no Rotten Tomates

Joan Didion, uma das vozes mais incisivas da literatura americana, uma vez observou que só quem nunca passou um Natal em Sacramento poderia exaltar o hedonismo da Califórnia. Sua percepção afiada refletia a intimidade com sua terra natal e uma compreensão profunda de sua época. Didion, natural de Sacramento, não apenas captou as nuances de sua geração, mas as expressou com uma sagacidade inigualável, permeando centenas de artigos e mais de uma dúzia de livros. Em cada linha, transmitia uma visão singular do caos e da beleza do mundo ao seu redor.

A partir de temas como a mente distorcida de Charles Manson ou os efeitos da Guerra do Vietnã sobre a juventude americana, Didion explorava o que muitos evitavam. No entanto, se tivesse permanecido enraizada na cidade onde nasceu, talvez sua obra nunca tivesse atingido as mesmas alturas. Esse sentimento ecoa na jornada de Christine McPherson, protagonista de “Lady Bird: A Hora de Voar”, dirigido por Greta Gerwig. Assim como Didion, Gerwig infunde seu filme com uma autenticidade visceral, extraindo suas próprias vivências de crescimento em um ambiente que parece mais uma prisão emocional do que um lar. A diretora transforma essas experiências pessoais em uma narrativa cativante, que se destaca como sua obra mais honesta e madura até o momento.

O filme de Gerwig é, essencialmente, um retrato da descoberta de que o mundo é muito maior do que imaginamos. Assim como a juventude se defronta com a dura realidade de que as cores do cabelo ou as notas escolares não são o centro do universo, “Lady Bird” explora a transição da adolescência para a vida adulta com uma sinceridade cortante. E muito disso é possibilitado pela performance luminosa de Saoirse Ronan, que entrega uma atuação de tirar o fôlego ao longo do filme, ao mesmo tempo em que oferece espaço para o restante do elenco brilhar. A narrativa de Gerwig, no entanto, não é apenas sobre Christine. É sobre o peso dos sonhos e o quanto estamos dispostos a sacrificar para alcançá-los. Em um mundo ideal, todos nós seríamos dignos de nossos desejos mais profundos, capazes de transformar nossas aspirações em realidade tangível.

Essa é, talvez, a essência da história de “Lady Bird”. À medida que Christine enfrenta as frustrações de sua pequena cidade, os conflitos com sua mãe e suas próprias inseguranças, o filme revela algo universal: o processo de abandonar velhas versões de si mesmo para abraçar novas possibilidades. Marion, a mãe interpretada por Laurie Metcalf, é a âncora que prende Lady Bird ao chão, mas também é a bússola emocional do filme, guiando a narrativa com uma crueza que evita qualquer vestígio de melodrama barato. A química entre Ronan e Metcalf é essencial para evitar que o filme caia em armadilhas previsíveis, conferindo uma profundidade rara à dinâmica mãe-filha.

No entanto, a verdadeira genialidade do roteiro de Gerwig reside nos momentos de sutileza, nos pequenos gestos que revelam as tensões e os desejos não ditos. Uma das cenas mais simbólicas do filme ocorre quando Lady Bird e sua mãe ouvem “As Vinhas da Ira” de John Steinbeck durante uma viagem de carro. O silêncio que paira após uma discussão acalorada entre elas fala mais do que qualquer diálogo poderia expressar, capturando a distância emocional que as separa. Esse tipo de detalhe eleva o filme para além de um simples drama adolescente, oferecendo um estudo complexo das relações humanas.

À medida que a trama avança, personagens como Danny O’Neill, vivido por Lucas Hedges, e Kyle Scheible, interpretado por Timothée Chalamet, entram na vida de Lady Bird, cada um representando uma etapa de sua jornada de autoconhecimento. O relacionamento com Danny, que inicialmente parece promissor, logo é interrompido por uma revelação inesperada, enquanto a figura rebelde de Kyle serve como um lembrete de que as respostas que ela busca fora de si talvez estejam mais próximas do que imagina. O verdadeiro crescimento de Christine ocorre quando ela percebe que sua busca desesperada por uma vida melhor em Nova York não resolverá sua insatisfação interna.

O filme encerra com Lady Bird finalmente reconhecendo essa verdade, o que a libera para seguir em frente e, quem sabe, começar a construir a vida que realmente deseja. Através do olhar meticuloso de Gerwig, “Lady Bird: A Hora de Voar” se torna uma obra sobre a busca por identidade, a necessidade de libertação e a dolorosa realização de que, muitas vezes, o que mais procuramos já está dentro de nós.


Filme: Lady Bird: A Hora de Voar 
Direção: Greta Gerwig 
Ano: 2017 
Gêneros: Comédia/Romance/Coming-of-age 
Nota: 10