Talvez o destino do Brasil seja o de permanecer essa pátria contraditória, uma mãe dura e distante, um lugar que parece alheio até mesmo aos seus próprios filhos, que nunca conseguem se desvencilhar completamente de suas raízes. No país do “futuro” eternamente adiado, retratado de forma ácida e romântica por Stefan Zweig, os extremos não se opõem, mas caminham lado a lado: o sagrado e o profano, o bem e o mal, a verdade e a mentira, como se fossem partes inseparáveis de uma mesma realidade.
Poucos escritores conseguiram capturar as nuances de um lugar tão fascinante e violento como João Guimarães Rosa. Ele era, sem dúvida, múltiplo, uma fusão de sertanejo, médico, diplomata, mas, acima de tudo, um contador de histórias que desafiava os limites da imaginação. Sua infância travessa, repleta de perguntas nunca satisfeitas, refletia a curiosidade insaciável que ele trouxe para a literatura. “Mutum”, a tocante adaptação de Sandra Kogut de “Campo Geral”, evoca o espírito inquieto e profundo de Rosa, lembrando-nos das possibilidades que a realidade brasileira oferece, mesmo que frequentemente deixemos de concretizá-las.
Thiago retorna ao sertão após uma temporada na cidade, carregando consigo imagens de mulheres nuas, que distribui aos irmãos, crendo serem santas. Essa ingenuidade, cuidadosamente construída por Kogut e a corroteirista Ana Luiza Martins Costa, estabelece um personagem infantil, mesmo para alguém que molda o mundo ao seu redor com brinquedos improvisados e imaginação fértil. Ao lado dele está Felipe, seu irmão mais novo, com quem divide sonhos simples, como o de um dia ver o mar ou aprender uma profissão.
Em meio às brincadeiras no quintal, Felipe chama Thiago, perturbado pela briga dos pais. A câmera, mantida do lado de fora do quarto, insinua a violência doméstica, à medida que Bero ataca a esposa, tendo descoberto sua traição com o próprio cunhado. O filme então segue por um segundo ato mais calmo, com cenas bucólicas de pai e filho no campo, até que a agressividade latente de Bero emerge, mudando para sempre o destino de Thiago.
Thiago da Silva Mariz e João Miguel dão vida a um retrato comovente de um pai e um filho que se distanciam de si mesmos e um do outro, numa obra ancorada em interpretações de atores não-profissionais. Assim como o mutum, pássaro noturno de canto discreto, a beleza das palavras de Rosa exige paciência e busca. É preciso tempo para absorver tamanha profundidade.
Filme: Mutum
Direção: Sandra Kogut
Ano: 2007
Gêneros: Drama/Coming-of-age
Nota: 10