Muitas vezes, os seres humanos se apegam a suas obsessões, principalmente quando elas são tudo o que resta após uma vida marcada por desilusões, sonhos não realizados e medos que se escondem nos cantos mais profundos da mente. Esses medos não desaparecem; eles permanecem à espreita, prontos para ressurgir ao menor sinal de fraqueza, como um vírus que ataca um corpo vulnerável assim que percebe uma brecha no sistema imunológico.
Uma vez que o flanco é exposto, é quase impossível impedir a invasão de pensamentos e sentimentos que, após anos de reclusão e planejamento, encontram uma maneira de se infiltrar silenciosamente, alimentando-se das melhores reservas da mente para ganhar força e dominar. No entanto, esses invasores cometem um erro fatal: ao explorar até o limite os recursos do hospedeiro, acabam por destruir o próprio sistema que lhes permite sobreviver, mostrando que há um ponto além do qual a agressão não pode ir sem consequências fatais.
No filme “71 — Esquecido em Belfast”, o diretor francês Yann Demange aborda o conflito étnico-religioso entre britânicos e norte-irlandeses como uma doença grave, um câncer que exige tratamento agressivo, sem garantias de cura. As tensões entre a Irlanda do Norte e o Reino Unido já duram meio século, mas suas raízes remontam a tempos quase esquecidos.
Embora não haja um consenso sobre o início exato das hostilidades conhecidas como The Troubles, alguns eventos são frequentemente citados como pontos de partida: a criação da Força Voluntária de Ulster em 1966, a marcha pelos direitos civis em 5 de outubro de 1968, a Batalha do Bogside em 12 de agosto de 1969 e, finalmente, o envio de tropas britânicas em 14 de agosto de 1969. Demange, contudo, escolhe situar seu filme em 1971, um ano marcado por significativas convulsões no Reino Unido, incluindo a entrada no Mercado Comum Europeu e a independência do Bahrein.
No que diz respeito à narrativa do filme, Demange, a partir do roteiro de Gregory Burke, oferece um panorama das ações dos rebeldes norte-irlandeses, limitando-se a esboçar as motivações por trás do conflito sangrento entre os dois lados, cuja brutalidade tem sido muitas vezes negligenciada pela história oficial. Jack O’Connell interpreta Gary Hook, um soldado britânico que é enviado a Belfast como parte de uma operação destinada a investigar um incidente de violência excepcionalmente cruel.
Em uma das várias batalhas entre os dois exércitos — onde distinguir entre os combatentes se torna uma tarefa árdua, dada a semelhança de aparência e o acento irlandês, mais gutural e rígido que o inglês —, Hook acaba sendo deixado para trás após sofrer um ferimento profundo no abdômen. Sua ausência prolongada desperta o interesse da mídia inglesa, sempre pronta para explorar histórias sensacionalistas com a ferocidade característica dos tabloides.
À primeira vista, “71 — Esquecido em Belfast” pode parecer um eco de clássicos do cinema de guerra, como “O Resgate do Soldado Ryan” (1998) de Steven Spielberg, mas essa comparação se desfaz por várias razões. Diferente da produção grandiosa de Spielberg, o filme de Demange trabalha com recursos limitados, sem as extravagâncias de orçamento que marcaram o épico bélico de duas décadas atrás.
Gary Hook é retratado como um soldado comum, um homem comum pego em circunstâncias extraordinárias, sem a aura heroica que permeia os personagens centrais de Spielberg. Mesmo assim, a atuação visceral de O’Connell recebeu merecido reconhecimento no Festival Internacional de Cinema de Toronto e, surpreendentemente, também pelo BAFTA, a prestigiada academia de cinema e televisão britânica. Com essa obra, Yann Demange e Jack O’Connell marcaram território, provando que histórias poderosas não dependem de grandes orçamentos, mas de narrativas autênticas e performances marcantes.
Filme: 71 — Esquecido em Belfast
Direção: Yann Demange
Ano: 2014
Gêneros: Guerra/Thriller/Drama/Ação
Nota: 9/10