Arthur Schopenhauer (1788-1860) defendia que a vida é apenas uma expressão da vontade, uma busca incessante por nossos desejos mais profundos e sombrios. Para este filósofo alemão, autor de “O Mundo como Vontade e Representação”, publicado em 1818, o ser humano é incapaz de realizar plenamente suas vontades, o que não é uma crítica direta à repressão dos desejos. Raras vezes o cinema capturou tão bem o pensamento schopenhaueriano quanto “O Cidadão Ilustre”. Este filme explora com perspicácia a inconstância e os equívocos fundamentais da natureza humana, refletindo sobre a eterna luta entre os sonhos e as limitações reais que os indivíduos enfrentam.
O enredo gira em torno de Daniel Mantovani, um escritor bem-sucedido que, ao receber o Prêmio Nobel de Literatura, começa a sentir o peso de sua sinceridade autodestrutiva. Nascido na fictícia Salas, na Argentina, Daniel viveu até os vinte anos em sua terra natal antes de se mudar para Barcelona. O Nobel, o ápice de sua carreira, traz à tona reflexões sobre sua integridade e a relação entre seu trabalho e a conformidade com os padrões estabelecidos. A honra máxima também revela o quanto sua obra está em sintonia com as preferências de uma elite, o que o leva a uma crise existencial e ao ostracismo.
Com o retorno a Salas, Daniel é envolvido em uma série de eventos organizados pelo prefeito local. Sua visita se transforma em um reencontro consigo mesmo, revelando nuances complexas e tragédias pessoais. Oscar Martínez, no papel de Daniel, entrega uma atuação brilhante, capturando a essência do personagem e suas lutas internas. Sua performance destaca a rebeldia quase infantil de Daniel e prepara o público para as reviravoltas do roteiro de Andrés Duprat, que combina elementos melodramáticos com uma narrativa de perseguição que se desenrola no clímax do filme.
Dady Brieva, interpretando Antonio, o amigo de Daniel, adiciona uma camada de conflito ao filme, representando a voz da hipocrisia contra a qual Daniel se rebela. Esse confronto culmina na reflexão sobre a sinceridade e as consequências de desafiar as convenções sociais. A relação entre Daniel e Antonio simboliza a luta entre a autenticidade e a falsidade, destacando a coragem necessária para se manter fiel a si mesmo.
Apesar de suas riquezas e sucesso, Daniel é movido por um misto de vaidade e orgulho. Ele retorna a Salas, não apenas para revisitar seu passado, mas também para enfrentar as contradições de sua vida. A cidade, que parece ter aguardado quatro décadas para se vingar de seu filho pródigo, submete Daniel a uma série de humilhações que gradualmente exigem respostas mais contundentes de sua parte. Seu sermão final contra as autoridades locais e um artista plástico que manipula um concurso de pintura marca o ápice do filme, oferecendo uma crítica feroz à política, à arte e à cultura.
O pensamento de Daniel, surpreendentemente, alinha-se com o de Roger Scruton (1944-2020), um filósofo conservador inglês. Ambos compartilham a visão de que a arte deve ser apreciada por sua beleza estética e não usada como instrumento para agendas ideológicas ou políticas. Scruton, conhecido por sua crítica aos intelectuais de esquerda, argumenta que a arte deve permanecer pura e desprovida de propósitos utilitários, um ponto de vista que Daniel parece compartilhar.
No final do filme, os diretores Gastón Duprat e Mariano Cohn apresentam a redenção de Daniel como uma forma de revanche. Ao anunciar a publicação de seu novo romance, inspirado em sua experiência em Salas, Daniel é visto como um mártir, um cordeiro sacrificado para expiar os pecados e a mediocridade do mundo. Sua jornada, embora dolorosa, reflete a vaidade e a determinação de um escritor que, apesar de tudo, alcança o que almejava: ser ouvido e compreendido, mesmo que à custa de seus princípios.
Daniel é a personificação da luta pela verdade e pela autenticidade, enfrentando as adversidades com uma coragem que poucos possuem. Seu retorno a Salas não é apenas um reencontro com o passado, mas uma batalha contínua contra a hipocrisia e a mediocridade, um testemunho do poder indomável da vontade humana.
Filme: O Cidadão Ilustre
Direção: Gastón Duprat e Mariano Cohn
Ano: 2016
Gêneros: Drama/Comédia
Nota: 10