A obra-prima escondida na Netflix que pouquíssimas pessoas assistiram Karen Ballard / Netflix

A obra-prima escondida na Netflix que pouquíssimas pessoas assistiram

Os filmes de guerra mantêm uma presença constante no cinema devido à habilidade de capturar a essência conflitante dessas histórias, enquanto cineastas se empenham em contextualizar eventos complexos, exigindo uma construção dramática precisa para que sejam compreensíveis e impactantes para o público. Diferentes perspectivas sobre eventos históricos, apresentadas por diretores que mergulham nesse universo por longos períodos, resultam em filmes meticulosamente elaborados que desafiam verdades estabelecidas sobre determinados assuntos. “O Cerco de Jadotville” (2016), a estreia de Richie Smyth no cinema dramático, é notável por sua clareza em desvendar a trama que aborda, revelando-se surpreendente por isso.

Em 1961, a República do Congo enfrentava uma crise severa. Grandes corporações disputavam os recursos minerais de Katanga, uma província rica em minérios e pedras preciosas. Nesse contexto tumultuado, Moïse Kapenda Tsombe ascendeu ao poder, instaurando uma das ditaduras mais fechadas e sangrentas da história. Em resposta, a ONU enviou um contingente de 150 soldados irlandeses, liderados por Patrick Quinlan, interpretado por Jamie Dornan, com a missão de restabelecer a paz na região. A falta de experiência de Quinlan e os recursos limitados destinados à missão resultaram num fracasso humilhante: o batalhão foi capturado por três mil mercenários locais, comandados por franceses e belgas vinculados às mineradoras.

Os soldados irlandeses, rotulados como fracos e desertores, foram enviados de volta para casa. Smyth contextualiza o enredo do filme no cenário da crescente polarização entre Estados Unidos e União Soviética durante a Guerra Fria, quando toda a África se tornava um campo de batalha entre as duas superpotências. A disputa pelas riquezas do Congo mergulhou a sociedade local em pobreza e conflitos armados, onde até crianças se viam forçadas a integrar as fileiras militares em troca de sustento, enquanto Tsombe acumulava riqueza.

O roteiro de Kevin Brodbin e Declan Power foca nas batalhas, predominantemente rurais, seguindo Quinlan e seus homens inexperientes. A inépcia da tropa é um dos principais obstáculos, mas os irlandeses mostram determinação; mesmo isolados, Quinlan e seus soldados avançam como podem até perceberem que estão cercados. O filme explora as razões geopolíticas dos conflitos. Conor Cruise O’Brien, o representante da ONU interpretado por Mark Strong, tenta pôr fim à conflagração, um ponto onde o componente histórico do filme se intensifica, tornando-se verdadeiramente relevante.

O sucesso de “Cinquenta Tons de Cinza” (2015) permitiu a Jamie Dornan explorar projetos mais desafiadores. Em “O Cerco de Jadotville”, ele retrata Quinlan com uma gravidade que diferencia seu personagem dos outros soldados. Os silêncios prolongados de Quinlan refletem seu tormento interno, um líder de um grupo de defensores armados da civilização, enfrentando a morte se necessário, enquanto tenta dominar um território desconhecido. Se Quinlan esperava uma vitória rápida, foi gravemente enganado. A parceria entre Dornan e Strong, ambos talentosos e muitas vezes subestimados, envia uma mensagem clara ao público e aos diretores: é essencial superar a tendência de eternizar certos profissionais em papéis desconfortáveis e constrangedores. Strong, como O’Brien, revela uma suavidade surpreendente ao seguir as instruções de Quinlan. A dinâmica entre os dois personagens, sem insinuar bromances, mantém a natureza afetiva da relação, uma escolha acertada de Smyth para humanizar os personagens e sua miséria existencial.

O elenco de “O Cerco de Jadotville” é um dos pontos altos do filme, destacando a atuação de Danny Sapani como Tshombe. Sapani se sobressai tanto que se torna o destaque do longa; sua interpretação do ditador congolês alterna entre momentos de ódio e euforia, mantendo a audiência envolvida. Embora o filme não alcance a intensidade de “Apocalypse Now” (1979) de Francis Ford Coppola, nem a delicadeza de “Até o Último Homem” (2017) de Mel Gibson, “O Cerco de Jadotville” é um filme que alerta sobre a importância de entender o contexto por trás das tragédias humanas. Os fãs de filmes de guerra podem sentir falta de um desenvolvimento maior de alguns arcos dramáticos paralelos, mas as cenas de batalha valem a pena.

As guerras, por mais planejadas que pareçam inicialmente, nunca são inofensivas. Num país privado de democracia, a última barreira contra a barbárie, até mesmo os incidentes mais banais se transformam em carnificinas. Isso prova que, ao contrário do que afirmam os tiranos de todas as ideologias, que sacrificam vidas em nome de seus interesses, nada na guerra pode ser considerado divertido.


Filme: O Cerco de Jadotville
Direção: Richie Smyth
Ano: 2016
Gênero: Guerra/Ação
Nota: 9/10