Indicada a mais de 50 prêmios, obra-prima de realismo fantástico está na Netflix Divulgação / Netflix

Indicada a mais de 50 prêmios, obra-prima de realismo fantástico está na Netflix

Desafiar convenções é um atributo essencial de qualquer expressão artística significativa. A arte existe para ir além das limitações da vida cotidiana. No cinema, essa premissa é honrada ao trazer filmes complexos que resistem a explicações simplistas.

A diretora italiana Alice Rohrwacher exemplifica essa abordagem, utilizando suas produções como um veículo para uma reflexão profunda sobre diversos aspectos da natureza humana. Em “Lazzaro Felice” (2018), ela não apenas incorpora esses ideais, mas também se empenha em tornar seus filmes cada vez mais sofisticados, ainda que isso os afaste do grande público e os coloque em um nicho seleto de espectadores. Esse é o verdadeiro ofício de um artista.

“Lazzaro Felice” demonstra que Rohrwacher nunca está satisfeita com o óbvio. Quando parece que a história está concluída, ela surpreende ao torcer a noção de tempo e espaço, deixando os espectadores incertos sobre o destino dos personagens. O roteiro oscila entre uma fábula pastoril e um conto urbano moderno, utilizando a sátira para criticar a desorganização social do século 21, mesmo em países desenvolvidos como a Itália.

A justaposição do campo e da cidade se desenvolve gradualmente no filme. Começando com uma paisagem rural idílica, mas impregnada de atraso, a narrativa exibe camponeses trabalhando nas plantações de tabaco, suas roupas sujas de suor e terra. Logo, a verdadeira perversidade da situação se revela: os trabalhadores, incluindo Lazzaro, o mártir vivido por Adriano Tardiolo, são tratados como servos, tendo seus salários descontados até o último centavo após um mês de trabalho árduo, inclusive por perdas causadas por lobos que atacam as ovelhas.

A condição de vida desses camponeses é retratada de maneira brutal. Eles estão tão acostumados ao abuso e ao desprezo que, mesmo sabendo que estão sendo explorados, raramente protestam.

Rohrwacher utiliza seu protagonista, que mantém uma expressão de bondade pura mesmo em meio à corrupção e cinismo, para destacar a importância de uma resposta pacífica em um cenário corrompido pela ganância. No centro desse microcosmo medieval, está a marquesa Alfonsina de Luna, interpretada por Nicoletta Braschi, que engana seus empregados com falsas promessas, mantendo a ilusão de uma comunidade unida.

Adriano Tardiolo não apenas interpreta Lazzaro; ele personifica o personagem. Escolhido por sua inexperiência, Tardiolo encarna perfeitamente o ideal do filme e da diretora. Lazzaro é a personificação da gentileza em um ambiente dominado pela agressividade. Ele ajuda todos ao seu redor, mesmo aqueles que o desprezam. Essa bondade genuína é notada por Tancredi, o filho rebelde da marquesa, interpretado por Luca Chikovani.

A relação entre Tancredi e Lazzaro, que poderia sugerir um romance, é na verdade baseada em uma lealdade que leva Lazzaro a uma situação extrema, desencadeando a virada central do filme.

A transição para uma alegoria sobre a injustiça social se torna mais clara à medida que Lazzaro, tal como o Lázaro bíblico, retorna à vida em um contexto ainda mais marginalizado. Ele percorre uma longa estrada entre a fazenda da marquesa e a cidade, encontrando antigos companheiros de trabalho agora vivendo como mendigos, subsistindo de pequenos golpes e passando fome. Essa jornada é uma metáfora potente de Rohrwacher, onde Lazzaro percebe que a servidão na fazenda se transformou em um tipo diferente de prisão na cidade, onde a competição pela sobrevivência é ainda mais feroz.

A fotografia de Hélène Louvart realça essa transição, mudando dos tons vibrantes da fazenda para os sombrios azuis e cinzas da cidade. A narrativa de Rohrwacher é uma crítica incisiva ao capitalismo desenfreado, refletindo sobre a precarização do trabalho e a evolução constante do mundo.

“Lazzaro Felice”, na Netflix, não é apenas um excelente filme; é uma obra-prima do neorrealismo contemporâneo, com claras referências a mestres como Fellini e Truffaut. É uma das produções mais significativas da última década, destacando-se por sua capacidade de abordar questões humanas fundamentais com uma sensibilidade lírica inconfundível.


Filme: Lazzaro Felice
Direção:
 Alice Rohrwacher
Ano: 2018
Gêneros: Drama/Coming-of-age
Nota: 10